Sob o céu de Reis: Uma viagem ao coração de Carpina. Por Flávio Chaves

  Por Flávio Chaves – Jornalista, poeta, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras. Foi Delegado Federal/Minc –   É dia de Santos Reis. As ruas de Carpina respiram um ar antigo, um cheiro de histórias que atravessam o tempo. O presente e o passado se encontram nas praças, nas esquinas, e, sobretudo, nos corações dos que, como eu, carregam essa cidade na alma. Carpina não é apenas um lugar onde nasci. É a argamassa de minha infância, o ponto de partida dos sonhos que me levaram a tantos cantos do mundo, e o chão onde meus pés ainda insistem em pisar quando a saudade se torna uma dor insuportável de distância.

Lembro-me das festas de Reis como quem recorda uma canção de ninar. Havia algo mágico na maneira como a cidade se preparava para receber essa celebração. Era como se o tempo parasse e todos os olhos se voltassem para a Praça de São José, onde a festa acontecia com o fervor de um povo que sabe amar suas tradições. Foi em 1914 que o senhor Tota, com a sabedoria de quem enxerga além do horizonte, deu início a essa devoção que se perpetua até hoje.

Naqueles dias, Carpina se tornava um imã, atraindo gente de todas as partes, especialmente da capital, Recife. O trem que cortava os trilhos e chegava na antiga estação trazia consigo multidões. O apito do trem era um prenúncio de festa, um som que anunciava que a cidade pulsava, viva e cheia de esperança. Ao descerem na estação, os visitantes eram recebidos por uma cidade que exalava alegria, fé e cultura. Rodas-gigantes se erguiam no horizonte, carrosséis giravam com suas luzes coloridas, e a música da ciranda, do fandango e do cavalo-marinho ecoava noite adentro.

Eu ainda ouço aquele barulho nostálgico do trem. Primeiro, o apito cortando o silêncio da noite, depois o chiar dos freios contra os trilhos, como se o próprio tempo tivesse parado para admirar a chegada daquela multidão ansiosa. E quando a madrugada quase amanhecia, o trem partia novamente, levando de volta as pessoas que dançaram, riram e amaram sob o céu de Carpina. Mas o barulho do trem partindo sempre trazia uma melancolia, uma sensação de que algo ficava para trás, como se a cidade, por um instante, perdesse um pedaço de si mesma.

Carpina foi e é um idioma do coração. Quem nasce aqui leva consigo um vocabulário de afetos que não se esquece, mesmo em terras distantes. Em cada palestra que dei pelo mundo, como professor e literato, nunca deixei de mencionar minha cidade natal. Falava dela como quem fala de um grande amor, daqueles que o tempo e a distância não conseguem apagar. E quando a saudade apertava, eu me lembrava das festas de Reis, da infância vivida entre o cheiro das barracas de alfinim e jaú, das cirandas que rodopiavam na praça, e da promessa de que, em Carpina, o mundo sempre parecia mais bonito.

É impossível falar de Carpina sem falar do trem. A locomotiva que cruzava a cidade não era apenas um meio de transporte. Era um símbolo de chegada e partida, de encontros e despedidas. E, para mim, sempre haverá algo de poético nesse vai e vem dos vagões, que carregavam histórias, esperanças e saudades.

O senhor Tota, com sua visão, jamais poderia imaginar que aquela primeira festa de Reis se tornaria o que é hoje. Ele e outros pioneiros, como João da Silva, Maria José e Antônio Nunes, plantaram uma semente que cresceu e floresceu ao longo dos anos. A Floresta dos Leões, como um dia também foi chamada Carpina, tornou-se um refúgio para quem busca reencontrar suas raízes, suas memórias, e, sobretudo, seu coração.

Hoje, ao ouvir o eco das músicas de Reis, ao sentir o cheiro da festa no ar e ao recordar os sons do trem que já não passa mais, sinto que estou em casa. Porque Carpina nunca deixou de ser minha casa. É o lugar onde minha história começou, onde aprendi a amar o mundo e a humanidade, mas, acima de tudo, onde aprendi a amar quem eu sou.

A Festa de Reis em Carpina não é apenas um evento. É um símbolo de pertencimento, de fé e de amor por uma terra que carrega em seus trilhos, em suas praças e em seus corações a essência de um povo que não esquece suas origens.

E, mesmo que o trem já não corra mais pelos trilhos da estação, ele continua vivo na memória e na alma de quem um dia viu o mundo a partir do pequeno pedaço de chão chamado Carpina.

Hoje, sob o céu de Reis, sou novamente aquele menino que, entre o barulho do trem e a alegria da festa, aprendeu a sonhar.