Por FLÁVIO CHAVES – Jornalista, escritor e membro da Academia Pernambucana de Letras
Parafraseando Guimarães Rosa: “ O poeta não morre, encanta-se”. O
poeta Miró da Muribeca, falecido há uma semana, completaria, hoje, 62
anos de idade. Em 31 de julho passado, dia do seu encantamento, a
notícia da sua partida se expandiu nas redes sociais e na boca do povo. Um
dos poetas mais instigantes de sua geração (a conhecida “poesia
marginal”) encantou-se, e a saudade já está presente entre os
admiradores de sua poesia.
Não é exagero nenhum, dizer que João Flávio Cordeiro da Silva – nome
de registro de Miró- saiu das periferias do Recife para o mundo. Isto
mesmo, o poeta tem poemas publicados em alguns países… Aqui em
Pernambuco, a sua obra, iniciada em1985, com a publicação de “Quem
descobriu o azul anil ?”, alcançou o auge de seu reconhecimento com a
obra “Miró até agora“, de 2013.
O livro “Miró até agora”, publicado pela Companhia Editora de
Pernambuco-CEPE, reúne 11 pequenos livros do poeta pernambucano,
publicados de 1985 até 2012. E bem documentou a reportagem da Revista
Continente, na época do lançamento da antologia: ‘’Miró, enfim, num livro
que fica em pé”. Ler e ouvir Miró (apresentava sempre os seus textos em
recitais públicos) nos permite reconhecer a importância da sua poesia. E
ela tem a marca de sua biografia, como no trecho do poema CLARINHO: “
Hoje à noite/ Irei dormir no mar/ Do amor/ Que foram náufragos/ Nos
meus sonhos medonhos/ Hoje vou ser/ Claramente/ Um negro”.
Uma das grandes forças do seu trabalho poético é o humor, irônico e
às vezes ácido, que pertence historicamente à tragicomédia brasileira:
Um exemplo é o poema FATO: ‘’Troco meu revólver/ Por comida/ Lazer/
Educação e moradia/ Disse o cara da periferia”. Este é o poema FITO:
‘’Branquelos deslizam leves/ Seus carros nas avenidas/ Uns blindados até
os dentes/ E os banguelas no sinal”. Marcas de existencialismo ele
também carrega em sua poesia, basta ler o poema PROVIDÊNCIAS DA
VIDA: ‘’Olho para mim/ Torno a olhar,/ A morte toca/ Em meu ombro
direito/ Rapidamente/ Guardo todos os meus segredos/ No bolso
esquerdo da calça/ No direito/ Alguns cruzeiros/ E pra não morrer/ Feio/
Beijo o espelho”. O fator transcendental é outra marca de sua poesia: “A vida é uma dádiva/ A vida é uma dúvida/ A vida é uma dívida/ Cada um que pague do seu jeito/ Só que Deus não aceita cartão de crédito”. E como
todo Poeta que se preza, ele também fala de amor: ‘’Amor amor
amor/tantas outras dançam no espaço/Mas é que dentro do meu
peito/Mora uma mulher de olhos/Claros de lua/Desejos de quebrar
tijolos/E desenhar uma nova estrada”. O Recife e suas mazelas estão
sempre presentes em sua poesia, muitas vezes de forma explícita: “Recife/
Cidade das pontes/ e das fontes/ de miséria/ Poetas mendigando passes/
Pra voltar pra casa/ E sua poesia/ Passando despercebida/ Aliás/ Nem
passa”.
Pois é, amigos e amigas, além do livro “Miró até agora”, já em segunda
edição (a primeira foi em 2013 e a segunda em 2016), está na sexta
impressão, com diversas tiragens: 300, 500, 1.000 exemplares…Segundo
dados da Cepe, o Poeta é o escritor mais vendido da editora desde 2013!
A obra de Miró vem crescendo a cada dia! Depois de ser Dissertação de
Mestrado em 2007, pelo professor de Literatura André Teles, autor da
tese “ Corpoeticidade: Poeta Miró e sua Literatura Performática” e de ter
sido tema de dois belíssimos documentários: ”Onde estará Norma?”, de
2007, realizado pela UNICAP, e do “Preto, Pobre, Poeta e Periférico”, de
2008, dirigido pelo escritor e médico Wilson Freire, vem aí a biografia de
Miró, escrita pelo poeta e professor Wellington de Melo:” O desafio é
fazer uma biografia que não seja simplesmente um relato dos fatos, mas
uma recuperação dessa memória que se agregam. Encontrar alguma
coerência para isso e ao mesmo tempo dar uma forma poética é talvez o
maior desafio”, explica Melo.
Nunca gostei de rótulos para poetas: poetas marginais, poetas de
ontem, de hoje e de amanhã, da geração desse ou daquele tempo, disso,
daquilo… Digo isto porque Miró foi essencialmente poeta! E ele foi além
do seu talento literário, porque a poesia foi a sua condição de vida! Miró
da Muribeca teve a audácia de largar um emprego formal (Serviços Gerais,
na Sudene-PE) para viver de sua poesia. Ele costumava dizer: ‘’Vivo de
poesia num país que quase ninguém lê”.
A poesia de Miró vai fazer falta na cidade. Porque ele era a sua própria
poesia. Será difícil ouvir a poesia dele sem ser recitada pelo próprio, como
acontece com poucos poetas que são a própria interpretação da sua
poesia. Mas ficaremos sempre com a lembrança de suas performances
viscerais, é bom que se diga sempre. Enquanto houver injustiças sociais
nas ruas do Recife e das metrópoles brasileiras, a poesia de Miró viverá.
Ela viverá porque existe Coelhos, Muribecas, cracolândias e misérias
urbanas espalhadas pelas cidades brasileiras. Enquanto existir
corpo/poética/cidade, a sua arte viverá. A sua poesia será sempre
necessária, especialmente para os mais necessitados. O poema de Miró
reza na cidade. E a cidade reza na poesia de Miró!
Finalizo com as palavras do próprio Miró, ao participar de sua
primeira live, no lançamento do seu último livro publicado em
homenagem aos seus 61 anos, em 2021 pelas Edições Claranan, intitulado
“O céu é no sexto andar “, afirma o poeta em sua fúria e intensidade:
– O que é mesmo estar vivo? Quando amanhece o dia, eu digo: “Tá
Deus, ganhei mais uma manhã. O que vou fazer nessa manhã? Amanhã
você não sabe se vai ter outra manhã. Tô sem a bebida, tomando um
cafezinho, porque não quero ir embora agora do quintal de Deus.”
Miró, parabéns para você, poetamigo!