Romances policiais? Por Mario Vargas Llosa

Na obra policial, busca-se o assassino; na literatura, interessa mudar a vida das pessoas

Mario Vargas Llosa, O Estado de S.Paulo

Confesso que fiquei muito preocupado quando soube que Javier Cercas ia escrever um romance policial. Por que um dos melhores escritores da nossa língua, depois de ter escrito aquelas obras-primas que são, entre seus outros livros, Soldados de Salamina, Anatomia de um Instante e O Impostor, escrever um daqueles romances que têm mais a ver com enigmas e cálculos do que com literatura?

Mas, depois de ter lido os três volumes de seu último romance e, sobretudo, o último, El Castillo de Barbazul, não tenho nada a objetar: o “autor” do crime aparece ali como nos romances de Faulkner: um simples pretexto, ainda que a ação se dê independentemente do enigma policial – ou melhor, ela está ali, desvelando-se desde o início da história, sem véus ou distrações para quem queira ver. E é uma novidade extraordinária, claro, que em um “romance policial” sejam os próprios policiais que cometam o crime para trazer ordem a uma realidade profundamente corrompida e que não tenham como retornar à legalidade a não ser alterando-a, violentando-a.

Javier Cercas
O escritor espanhol Javier Cercas, autor de ‘O Rei das Sombras’ Foto: Pere Duran

As últimas 100 ou 150 páginas de El Castillo de Barbazul são verdadeiramente extraordinárias. Como se sabe que Carrasco tem um plano minucioso para derrotar o milionário que montou um bordel de moças que ele e seus amigos corromperam e destruíram, os leitores se esquecem de Cosette e se interessam apenas pelo plano, idealizado por Carrasco, para acabar com o empresário poderoso e corrupto. E a história é tão bem conduzida que você não perde um momento da conspiração até que ela termine. E a história ressurge mais uma vez nesse ponto do romance, quando Cosette deixa seu leito de doente e informa ao pai e aos amigos policiais que vai testemunhar perante o juiz sobre a violência infligida a ela e que decidiu ser policial, uma policial honesta e realizada como seu pai – que começara como policial e acabara se tornando bibliotecário. Ou seja, todos são cidadãos exemplares. É um romance – uma série ficcional – que tem algo de bálsamo, que nos conforta das misérias que vemos ao nosso redor a cada instante.

Depois de ler este romance “policial” de Javier Cercas, fiquei pensando nos grandes escritores e descobri que quase todos eles – começando com Dickens e continuando com Hemingway e quase todos os modernos que mais me interessam – exploram o gênero policial, embora ninguém ouse colocá-los entre os autores típicos do gênero que, sem dúvida, nunca deixou de ter seus leitores e seguidores. Ainda assim – e nisso sigo um dos grandes críticos de nosso tempo, estou me referindo aqui ao norte-americano Edmund Wilson – ninguém imaginaria um William Faulkner entre os seguidores do gênero “policial”, embora em quase todos os seus romances o grande escritor sulista se valha – e com que destreza – do que há de mais típico das histórias policiais.

Em que consiste esse gênero? Em que haja um assassinato e em descobrir – antes que o autor o faça – o perpetrador do crime. Os níveis de sofisticação alcançados pelos autores do gênero são muito altos, claro, e não é estranho que eles recorram às invenções mais destrutivas ou que a indústria do crime tenha aproveitado os romances policiais para se refinar e imitar essas formas complicadas de produzir a morte dos inimigos. Talvez seja o que aconteceu no México, onde na realidade – mais do que nos livros – a arte de matar chegou a extremos indescritíveis. Há, porém, um momento (que não é fácil de precisar) em que o romance policial deixa de ser literatura e passa a ser outra coisa: um mero enigma.

Ernest Hemingway
O escritor Ernest Hemingway Foto: Gatsbe Exchange

Quando isso ocorre? Quando identificar o(s) assassino(s) se torna mais importante do que qualquer outra coisa – ou seja, mais importante do que a qualidade da escrita, do que a singularidade ou humanidade perfeita ou imperfeita dos detetives ou investigadores, do que a cidade ou país onde ocorre a trama e, principalmente, do que a linguagem em que o romance é escrito, da qual depende toda a literatura.

Os leitores literários sabem perfeitamente quando os romances policiais deixam de ser “boa literatura” e o texto se torna outra coisa: um enigma, na melhor das hipóteses. Ou, no mais sofisticado deles, uma história à parte, na qual o crime deixa de ser importante e passa a ser mero pretexto para se criar a intriga policial. Essa intriga é o que, em última análise, marca a diferença entre um romance policial e uma obra literária. Escusado será dizer que não há equivalência entre uma coisa e outra, porque a literatura pode mudar a vida das pessoas, ao passo que o romance policial só é capaz de entreter os leitores por um tempo, ou mesmo pervertê-los, na medida em que esses romances menores impedem que assimilem a verdadeira literatura.

Será que existe uma fronteira rigidamente estabelecida entre a literatura verdadeira e a falsa? Sim, existe, mas não é a mesma para todos. E, assim como se pode estabelecer um denominador comum do que constitui uma literatura boa e autêntica, seria possível, sem dúvida, distinguir com certo grau de precisão entre leitores de romances policiais e aqueles que, como este que vos escreve, nunca se sentiram atraídos por essas histórias, embora estas, de fato, sejam capazes de exaltar a curiosidade ou a necessidade de “querer saber” mais do que se sabe, até que se revele o nome dos verdadeiros assassinos.

Claro que existem diferenças entre estes livros e aqueles. Tanto que me atrevo a estabelecer um ponto de discordância e afirmar que os escritores podem muito bem se valer dos ingredientes típicos dos romances policiais, como faz Javier Cercas em seu último romance, desde que em seus escritos haja, além disso, outras coisas. Esta talvez seja a maior diferença: os escritores de romances policiais não podem alterar o traço essencial do gênero: a descoberta do assassino ou assassinos sem que suas histórias deixem de fazer parte desse gênero, o romance policial, e passem a fazer parte, para o bem ou para o mal – geralmente este último é o mais frequente dos casos – da literatura pura e simples. E que decepções esses casos pouco frequentes costumam produzir nos leitores que percebem que uma história “policial” pode ser muito mais do que isso.

Há 160 anos nascia o criador do mítico detetive Sherlock Holmes
Estátua de Sherlock Holmes, o mais famoso personagem de Arthur Conan Doyle, na Suíça Foto: Arnd Wiegmann/Reuters

O que une ou distancia esses gêneros? Um verdadeiro mundo. No romance “policial”, o fundamental é descobrir o assassino e isso depende da habilidade que a prática atual desenvolveu no leitor e das elucubrações e complexidades que os autores usam para estimular a curiosidade de seus leitores. Já na literatura, o mais importante nunca será identificar o assassino, mas sim mudar a vida das pessoas que leem, revelando-lhes a maior complexidade do mundo real que pensavam despertar certos apetites ou anseios nos leitores, que, a partir desse romance, descobrem um mundo novo ou uma maneira nova de encarar esse mundo, cientes de suas complexidades ou estruturas secretas, das quais sentem que suas vidas vão depender no futuro. Ler Dostoievski ou Flaubert não é ler Conan Doyle, embora os três sejam mestres eminentes no gênero que cultivam. Mas é o gênero que estabelece as distâncias, não os autores, que podem ser os maiores nessa especialidade.

/TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU