Mais de 600 cientistas e jornalistas da área das ciências dizem-se amargurados por verem o país que mais contribuiu para a derrota do nazismo no papel de instigador de uma nova guerra na Europa. “A guerra com a Ucrânia é um passo para lado nenhum”, afirmam.
A iniciativa partiu de Mikhail Gelfand, bioinformático especialista em evolução molecular e genómica comparativa no Instituto de Ciência e Tecnologia de Skolkovo, perto de Moscovo. No final de uma aula por Zoom em que o tema acabou por ser a invasão russa da Ucrânia que acabara de se desencadear, alguns dos estudantes partiram para as manifestações. Enquanto isso, Gelfand, casado com uma cidadã ucraniana, começou a recolher assinaturas para uma carta aberta(link is external) que já recolheu mais de 600 assinaturas entre cientistas e jornalistas da área das ciências.
Entrevistado pelo Science.org(link is external), Mikhail Gelfand explicou o que o levou a tomar esta iniciativa: “Foram três coisas. Em primeiro lugar, para mostrar que a comunidade científica russa não é o mesmo que a liderança russa. Em segundo lugar, para mostrar aos nossos colegas ucranianos que nos opomos ao que o nosso governo está a fazer e estamos a fazer o que podemos para o impedir. E em terceiro lugar, para mostrar isso mesmo à comunidade internacional, na esperança de que quaisquer ações para punir a Rússia sejam ponderadas de forma a não castigar as pessoas que se opõem ao que a Rússia está a fazer”.
Esta preocupação com a eventualidade de as sanções poderem atingir os investigadores científicos justifica-se por neste momento já ser difícil adquirir equipamentos. “Conheço colegas que não conseguiram máquinas de sequenciação porque são consideradas de uso dual [para fins pacíficos e militares]”, afirma o cientista.
Leia aqui a carta aberta dos cientistas russos:
Nós, cientistas e jornalistas científicos russos, declaramos um forte protesto contra as hostilidades lançadas pelas forças armadas do nosso país no território da Ucrânia. Este passo fatal conduz a enormes perdas humanas e mina as fundações do sistema estabelecido de segurança internacional.
A responsabilidade de desencadear uma nova guerra na Europa recai inteiramente sobre a Rússia. Não há qualquer justificação racional para esta guerra. As tentativas de usar a situação em Donbass como pretexto para lançar uma operação militar não inspiram qualquer confiança. É evidente que a Ucrânia não representa uma ameaça para a segurança do nosso país. A guerra contra ela é injusta e francamente insensata.
A Ucrânia tem sido e continua a ser um país que nos é próximo. Muitos de nós temos familiares, amigos e colegas cientistas a viver na Ucrânia. Os nossos pais, avós e bisavós lutaram juntos contra o nazismo. Lançar uma guerra em nome das ambições geopolíticas da liderança da Federação Russa, movida por fantasias historiosóficas duvidosas, é uma traição cínica à sua memória.
Respeitamos a condição de Estado ucraniano, que assenta em instituições democráticas realmente funcionais. Tratamos com compreensão a escolha europeia dos nossos vizinhos. Estamos convencidos de que todos os problemas nas relações entre os nossos países podem ser resolvidos de forma pacífica.
Tendo desencadeado a guerra, a Rússia condenou-se ao isolamento internacional, à posição de um país pária. Isto significa que nós, cientistas, já não seremos capazes de fazer o nosso trabalho normalmente: afinal, conduzir investigação científica é impensável sem uma cooperação total com colegas de outros países. O isolamento da Rússia em relação ao mundo significa mais degradação cultural e tecnológica do nosso país, na ausência total de perspetivas positivas.
A guerra com a Ucrânia é um passo para lado nenhum. É doloroso para nós perceber que o nosso país, que deu um contributo decisivo para a vitória sobre o nazismo, tornou-se agora o instigador de uma nova guerra no continente europeu. Exigimos uma paragem imediata de todas as operações militares dirigidas contra a Ucrânia. Exigimos o respeito pela soberania e integridade territorial do Estado ucraniano. Exigimos a paz para os nossos países.