Igor Gielow
Folha
Nas palavras de abertura de seu encontro privado com o presidente russo, Vladimir Putin, Jair Bolsonaro afirmou que “somos solidários à Rússia”. Ele não disse solidário em relação a quê, mas o seu anfitrião está no centro de uma das maiores crises de segurança no mundo desde o fim da Guerra Fria, a tensão com a Ucrânia e o Ocidente, que acusa Moscou de ameaçar invadir o país vizinho.
Mais tarde, em comunicado após a reunião, Bolsonaro tentou diluir o impacto da fala, que será vista negativamente nos Estados Unidos, que eram contra sua vinda à Rússia. “Nós somos solidários a todos os países que querem e se empenham pela paz”, afirmou.
ENCONTRO PRODUTIVO – As palavras televisionadas foram, como de praxe, econômicas de lado a lado. O russo afirmou esperar um “encontro produtivo”, enquanto o brasileiro enumerou as áreas de cooperação em negociações nas reuniões paralelas ao encontro: defesa, energia e agricultura.
“Estou muito feliz e honrado por este convite. Somos solidários à Rússia. Queremos muito colaborar em várias áreas, defesa, petróleo e gás, agricultura, e as reuniões estão acontecendo. Tenho certeza que esta passagem por aqui é um retrato para o mundo que nós podemos crescer muito as nossas relações bilaterais”, disse o brasileiro.
Ele agradeceu Putin por ter concedido indulto no ano passado a um motorista brasileiro que estava preso na Rússia acusado de entrar no país com uma substância ilegal.
TESTOU NEGATIVO – Ambos conversaram, com intérpretes, separados apenas por uma mesinha de centro, em um encontro que teve cerca de uma hora de atraso e durou o mesmo. Isso indica que Bolsonaro aceitou fazer os testes RT-PCR russos demandados pelo governo russo para quem fala com o presidente, conhecido por seu temor de pegar Covid-19.
Putin recebeu três doses de vacina; Bolsonaro, nenhuma, e lidera campanha contra imunizantes. Outros líderes, como Olaf Scholz (Alemanha) e Emmanuel Macron (França), se recusaram a fazer o teste russo por temor de ter dados do DNA roubado, o que pode apontar problemas de saúde potenciais e fragilidades. Neste caso, foram dirigidos à mesa gigante de 5 metros que virou meme no mundo todo.
Ao fim de almoço, que durou mais uma hora, ambos concederam uma curta declaração à imprensa e divulgaram um comunicado conjunto. Além da fala sobre a solidariedade, Bolsonaro fez um aceno a seu público: “Compartilhamos de valores comuns, como a crença em Deus e a defesa da família”.
MESMA RETÓRICA – De fato, são bandeiras históricas de Putin, que neste particular divide retórica com o brasileiro. Na sua fala, anterior à de Bolsonaro, o russo afirmou que “nós apoiamos o uso da diplomacia para resolver problemas” e fez um elogio ao multilateralismo, algo que vem fazendo em oposição ao que chama de isolacionismo americano.
Não houve citação explícita à Ucrânia, como esperado. Bolsonaro reiterou o agradecimento ao apoio de Putin, que já era conhecido e não resultou em nada concreto desde 2014, à demanda brasileira de fazer parte como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
O presidente russo apresentou condolências ao brasileiro pela tragédia das chuvas em Petrópolis, onde dezenas morreram. O brasileiro, que ainda não tinha falado em público sobre o tema, agradeceu.
APOIO À DIPLOMACIA – A demonstração de “solidariedade” de Putin será lida como apoio nos meios diplomáticos ocidentais, apesar de o Itamaraty sustentar que o Brasil manterá sua linha de independência e defesa de soluções pacíficas de conflitos no mundo todo.
Essa tradição havia sido rompida nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro, com a gestão agressiva do expoente da ala ideológica do bolsonarismo Ernesto Araújo. Ele defendia uma aliança carnal com os EUA contra o que chamava de globalismo, caiu em março de 2021 e hoje está licenciado da diplomacia.
Antes da viagem de Bolsonaro, os EUA fizeram gestões para primeiro impedir a visita e, depois, para que ele levasse palavras duras a Putin sobre a condução da crise —o que evidentemente não irá acontecer.