Aplicativo desenvolvido por estudantes da UFPE ajuda na comunicação de crianças autistas

Programa auxilia na criação de tarefas cotidianas de forma educativa e lúdica

Rafael Furtado/Folha de Pernambuco
Um dos grandes desafios enfrentados por pais e familiares de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) é, sem dúvida, a comunicação. A linguagem, seja ela verbal ou não, não é necessariamente aprendida pelos pequenos da mesma forma que crianças consideradas neurotípicas, ou seja, que não possuem alterações relacionadas ao desenvolvimento neurológico.

A quebra das barreiras comunicacionais se transformou na inspiração de quatro jovens estudantes da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) para desenvolver o aplicativo para iPad, AuTime.

“A gente tinha um propósito em comum, que era trabalhar com acessibilidade”, explicou Eduardo Ramos, 28, graduando em Design. Ele é um dos responsáveis pela ideia do projeto, que também conta com Matheus Andrade, 21, Hélio Oliveira, 23 e Victor de Araújo, 24, alunos dos cursos de Engenharia da Computação, Design e Engenharia Elétrica, respectivamente.

Há dois anos, os estudantes foram selecionados para participar do programa Apple Developer Academy, e assim tiveram a oportunidade de imergir no mundo da programação.

O resultado dessa experiência, que terminou no último dia 10 com a formação do grupo e de outras quatro outras turmas de estudantes de diferentes partes do país, foi o AuTime. O app pretende ajudar pais e crianças autistas a criar e seguir uma rotina de tarefas no dia a dia, apresentadas aos pequenos de forma lúdica e estimulante.

O nascimento do app
A ideia inicial do aplicativo nasceu de um sonho de Eduardo para ajudar seu primo João, uma criança autista, a se comunicar melhor com as outras pessoas de seu entorno.

“Desde muito novo ele tinha muita dificuldade de comunicação. Eu era uma das poucas pessoas que conseguia compreender a forma como ele se comunicava e a gente acabou criando um laço muito forte”, conta.

“Sempre tive em mim um propósito de criar alguma coisa que fosse auxiliá-lo. Quando fomos desafiados a trazer aspectos de nossas vidas para criar um aplicativo, eu pensei poxa, imagine se eu tivesse alguma coisa que pudesse ajudar João”, contou o estudante.

Durante os encontros virtuais, feitos para manter o distanciamento necessário durante a pandemia de Covid-19, os integrantes perceberam que todos tinham vontade de criar soluções para atender melhor as demandas da sociedade.

Hélio, outro participante do grupo, tinha um desejo de trabalhar com educação, enquanto Victor queria focar em pessoas não-neurotípicas. “A gente se uniu por um propósito. Todo mundo tinha dentro de si a vontade de ajudar as pessoas com a tecnologia. Quando a gente foi discutindo, nos unimos bem, foi um match bem feito”, contou Matheus.

Ajuda da tecnologia
Durante o desenvolvimento, o grupo contou com ajuda de Keise Nóbrega, professora do Departamento de Terapia Ocupacional da UFPE. Ela também é membro do Núcleo de Tecnologia Assistiva do Centro de Ciências da Saúde (CCS). “O que mais me chamou atenção nesse projeto foi a questão de como melhorar a interação e a comunicação dessas crianças”, confessou ela.

“As crianças com autismo têm uma inflexibilidade para a rotina. Às vezes, elas têm um comportamento muito restrito. Se você sai daquele contexto, daquele dia a dia, elas podem não compreender, ficar desorganizadas, se frustrar”, explica a terapeuta ocupacional. “A ideia é justamente tentar trabalhar com uma rotina mais estruturada, utilizando as imagens do cotidiano delas. Para que ela [a criança] saiba o que vai precisar fazer”, definiu.

Dois tipos de perfis
Para o uso do AuTime, os jovens construíram dois tipos de perfis, um para os pais e outros para as crianças, com recursos distintos para as necessidades de cada um. No quadro infantil, por exemplo, os pequenos usuários ganham reforços positivos ao fim de cada tarefa, que podem variar entre frases motivacionais a estrelinhas, quando o nível de dificuldade for maior. Outro ponto importante é que o humor da criança também é avaliado por ela mesma ao fim de cada atividade.

“A tecnologia faz parte da vida das pessoas, então, nós precisamos nos apropriar e usá-las ao nosso favor, em nosso benefício. As crianças com autismo têm interesses pelos eletrônicos, mas [muitas vezes] ficam presas em um processo que não traz um estímulo de habilidades ou [a utilizam] de forma muito passiva, em que se está ali apenas vendo as imagens”, avalia Keise Nóbrega.

“O aplicativo pode possibilitar que ela [a criança] possa construir, refletir e compreender essa rotina. Que a gente possa não se distanciar disso [dos dispositivos tecnológicos], mas também utilizá-los com recursos físicos, de forma saudável e funcional”, completa a professora.

Como funciona o aplicativo
O software, criado pelos estudantes em parceria com a Apple, faz uso de uma tecnologia assistiva, ou seja, otimizada para pessoas com algum déficit. Na tela dos pais é permitido cadastrar as atividades que devem ser feitas pela criança. Elas são totalmente personalizáveis, com foto escolhida pelos responsáveis, horário, categoria, se ela vai ser uma atividade que vai gerar estrela ou até mesmo outras tarefas. As demandas podem ser visualizadas diária ou semanalmente.

“A estrela é uma coisa que os pais colocam. Ela funciona como um reforço positivo. A ideia é o que os pais identifiquem quais são as atividades que a criança tem mais dificuldade, ou vendo a rotina da criança, ou entendendo como foi que ela se sentiu – baseado no próprio feedback do filho – e aí eles escolhem quais tarefas podem gerar uma estrela. Essa estrela pode gerar uma atividade prêmio no final”, explica Hélio Oliveira, um dos responsáveis pelo projeto.

Recompensas pelas atividades
Na tela infantil, as atividades cadastradas também podem ser vistas semanalmente ou diariamente, com o bônus de monitorarem o humor dos pequenos, além de gerarem recompensas. “Essa parte da criança foi um desafio porque a gente pensa na usabilidade do sistema. Os pais são um usuário padrão de iPad. Mas nas crianças, o contexto é totalmente diferente, primeiro por ser infantil e depois por ser uma aplicação para crianças com autismo”, diz Hélio.

Ele também comenta que para criar uma interface mais atrativa o grupo chegou a um guia feito para atender as demandas de seu público-alvo. “A gente começou a seguir o GAIA, que é um Guia de Acessibilidade de Interfaces Acessíveis para crianças com autismo. Nossa intenção era fazer com que a interface se enquadrasse, pelo menos, com a maioria das crianças dentro do espectro”, completa o estudante.

Acesso ao programa
Para o grupo, a maior dificuldade durante o processo acabou sendo chegar ao público. De um lado havia o distanciamento, causado pela pandemia, e do outro a falta de acesso ao equipamento por pais e crianças. Um dos direcionamentos do programa da Apple é que os alunos desenvolvam soluções para o sistema operacional iOS, ou seja, para iPhones, por se tratar de um dispositivo mais acessível do que os outros comercializados pela Maçã.

Porém, para atender as crianças da forma que desejavam o grupo precisava de uma tela maior. Conseguiram autorização para migrar de sistema, passando para o iPadOS e criar algo que seria rodado m um iPad. A decisão acabou afunilando as opções de teste, visto que o tablet mais barato da empresa é vendido a partir de R$ 3.999, no site oficial da marca.

Em fase final de montagem, o AuTime está marcado para chegar gratuitamente a loja de aplicativos da Apple em fevereiro de 2022. A intenção dos jovens é conseguir não apenas viabilizar o acesso para o dispositivo, mas também, no futuro, exportá-lo para outras plataformas, como smartphones e, quem sabe, relógios inteligentes.