Ao tratar da alma após a morte, Dante nos fala sobre sua própria Comédia, a Divina!

Dante Alighieri: “A razão vos é dada para discernir o bem do mal” | Super

Carlos Russo Jr.
Espaço Literário Marcel Proust

Dante Alighieri designou seu colossal poema como uma Comédia, muito embora, ao se referir à obra que mais o inspirara na composição da mesma, a “Eneida” de Virgílio, tenha designado aquela de Tragédia. Quem lhe apostrofou o nome Divina foi um contemporâneo de Dante, Boccacio, o autor do “Decameron”.

“A Divina Comédia” possui um dos mais sublimes temas, ou seja, o destino da alma após a morte, e a justiça divina sendo revelada. Seu Canto possui um final feliz e seu estilo é baixo e humilde.

SABER LEGÍTIMO – A beleza poética de a “Divina Comédia” coincide com a visão da verdade divina, o saber legítimo, tão belo quanto o é a beleza legítima. Já a obra de Virgílio, da antiguidade romana, era para ele uma doutrina artística, aquela da simplicidade, e Dante aprendeu com ele a arte da expressão genuinamente poética do pensamento.

Para seu tempo, Dante, sob a influência de Virgílio, livrou a poética de seu hermetismo pedante e esnobe. Sem perder-se no abstrato, no caprichoso, e no fragmentário. Pois ao poetar em italiano, negando-se a fazê-lo no tradicional e imperativo latim, Dante criou o vulgar ilustre, e ele, o precursor do Renascimento, como humanista que era, se comunicou em na língua vulgar, a do povo!

No século XIV, justamente no intervalo entre duas ondas destruidoras de peste que assolariam a Toscana, Dante foi o primeiro poeta que renovou o sentimento universal ítalo-romano, e remodelou o sentir da nacionalidade.

ALGO DE NOVO – Na realidade, a “Comédia” não possui um gênero. Ela o é comparável apenas a si mesma, sendo profética e exemplar do Mundo Moderno, que é o mundo dos indivíduos, em que tudo parte do particular, do indivíduo e que, através da máxima singularidade, torna-se universalmente válido.

Porque Dante une o alegórico ao histórico, seus personagens adquirem em suas posições a eternidade. Na “Comédia”, a imagem do universo está em perfeita concórdia consigo mesmo, na mais bela e original fantasia. O Inferno é o reino da natureza, enquanto o Purgatório é o da história; já o Paraíso, musicalmente, é o reino da arte.

A leitura que Hegel realizou da “Comédia” é muito interessante. Para ele, a obra abarca a totalidade da vida mais objetiva: a situação eterna do inferno, a da purificação, e a do paraíso, e sobre esta base indestrutível movimentam-se as pessoas do mundo real, ou antes, “movimentaram-se agora imobilizadas pala justiça divina e tornaram-se eternas elas próprias”.

HERÓIS ETERNOS – Enquanto em Homero os heróis perduram em nossa memória pelas Musas, em Dante estes criaram uma individualidade e são eternos por si próprios.

E é Virgílio quem ressurge das sombras para ser o guia de um Dante perdido nas selvas, nos descaminhos que a vida lhe haviam imposto, ao se exilado de sua amada Florença.

Virgílio, vindo do Limbo (lugar dos sábios e heróis da Antiguidade, dado que viveram antes de Cristo) será seu guia no Inferno e no Purgatório. E ele conduz Dante por ordem de Beatriz (que do Paraíso o ordena), até a luz, o Paraíso.

UM SÁBIO – Na “Comédia”, Virgílio é um sábio. Conhece os caminhos infernais e tem poder sobre eles. Poder que vem de Deus, para salvar a alma de Dante. Logo, Virgílio é o símbolo da ordem celestial e da boa ordem terrena. Prepara o caminho a ser seguido por Dante até o limiar do reino dos Céus, que só a revelação e a fé podem desvelar.

Mas Virgílio, embora por ser pagão, jamais poderá usufruir de seus frutos, mantém uma dignidade interior, sempre predisposta ao bem. Sabedoria e virtude, coragem e brandura, moderação e firmeza, humildade paternal em cada gesto. E ao chegar ao Paraíso, Beatriz toma nosso poeta pela mão.

Desde o princípio, Dante soube que tanto seu estilo quanto seu tema eram dos mais sublimes. Ele, não sem objetivos, sita seu poema como sacro, mas implora inspiração às Musas, a Apolo do Panteão Grego, assim como ao Deus cristão.

AMAR E SOFRER – Em sua monumental obra, interpenetram-se tragédia, sátira e comédia! A Divina Comédia possui demasiado realismo, vida concreta, vida biológica. “A fala divina é suave e chã, não elevada ou soberba, como a fala de Virgílio e dos poetas.”

Na sua lírica transparecem valores fundamentais de nossa civilização: não amar é indigno de um coração nobre, o amor é a via para o conhecimento e as virtudes, o amor é tanto encantamento quanto tormento, sofrimento e fervor são uma só coisa, não é apenas o anseio que faz sofrer o amante, mas também a proximidade do amado…

“A Divina Comédia é o maior documento do estilo sublime do cristão literário”, acentua Eric Auerbach em seu “Mimesis”.