Para o radical cofundador da nouvelle vague francesa, fazer filmes é como jazz: escolher um tema, improvisar e “a coisa se organiza”. Após quase sete décadas de carreira, Godard permanece inquieto e avesso a honrarias.
Jean-Luc Godard está bem. “Quem sabe, os charutos dele combatem todos os vírus, também o coronavírus”, brincou seu colaborador Fabrice Aragano, falando ao portal de notícias suíço nau.ch. Ainda assim, as retrospectivas em honra do cineasta francês transcorrerão sem sua presença, já que ele prefere ficar em casa.
No vilarejo suíço a que se recolheu desde os anos 1970, o incansável realizador reflete sobre novos filmes. Dois esboços de projeto estão sobre sua mesa, revela Aragano, as rodagens para um deles acabam de começar. O nonagésimo aniversário não lhe importa nem um pouco: para Godard, trata-se de um dia de trabalho como qualquer outro.
Cinema-improvisação
Na década de 1960 Godard foi um dos fundadores da nouvelle vague, a “nova onda” da França. “Eu fazia filmes como um músico de jazz: você escolhe um tema, improvisa, e de algum modo a coisa toda se organiza”, comentou certa vez, lembrando de seus primórdios na sétima arte.
Tanto ele quanto Eric Rohmer, Jacques Rivette, François Truffaut e Claude Chabrol haviam começado a carreira como críticos de cinema e trabalhado para a revista Cahiers du Cinéma. Para todos, a narrativa convencional dos velhos filmes estava totalmente ultrapassada.
Quem deu a partida para a “nova onda” foi Truffaut, amigo e companheiro de discussões intelectuais de Godard, com Os incompreendidos. Em maio de 1959, o filme estreou em Cannes.
No ano seguinte, era a vez de Godard, com o lendário Acossado, inspirado pelos filmes de gângster hollywoodianos em preto-e-branco. Tanto a rodagem com câmera de mão, em vez do complexo aparato de praxe, quanto a técnica de cortes inovadora fizeram furor no festival no sul da França.
Os filmes da nouvelle vague refletiam o modo de encarar a vida de uma nova geração de cineastas franceses, que queriam ver nas telas a realidade nua e crua, autêntica e palpável. A denominação logo se estabeleceu, também intimamente associada a Godard.
Antes cinema do que universidade
Godard nasceu em Paris em 3 de dezembro de 1930, filho de um oftalmologista suíço. Ele e seus três irmãos cresceram na terra do pai, porém em 1943 a família retornou para a França, onde Jean-Luc frequentou o liceu. Teve que repetir o teste final três vezes, pois sempre tinha outras coisas na cabeça.
O estudo de antropologia na Universidade Sorbonne tampouco o interessava particularmente: ele preferia passar o tempo nos meios cinematográficos e intelectuais de Paris. Em vez de frequentar as palestras, ia todo dia ao cinema, o que acarretou a suspensão da mesada paterna.
Tendo agora que ganhar a vida com trabalhos ocasionais, ele passou apaixonadamente a escrever artigos para a revista Gazette du Cinéma. Uma viagem aos Estados Unidos em 1950-51 lhe selou o futuro: em 1954, rodava seu primeiro filme, o documentário Opération Beton, sobre a construção de uma gigantesca represa.
Ao longo de quase 70 anos de carreira, Jean-Luc Godard produziu mais de 40 longas-metragens, numerosos curtas, documentários experimentais, ensaios cinematográficos altamente intelectuais, vídeos de música, alguns também como roteirista ou codiretor, ao lado dos companheiros da nouvelle vague. Porém ele permaneceu o representante mais radical dessa nova maneira de rodar filmes modernos e ousados.
Ousadia intelectual e formal
Em O desprezo, de 1963, Brigitte Bardot, em seu primeiro papel no cinema, filosofava diante das câmeras se o companheiro de tela achava atraente o seu traseiro – um escândalo, na época. Em 1980, Godard repetiria essa cena em Salve-se quem puder (a vida), desta vez com Isabelle Huppert, diante das vacas de um estábulo.
O fumante inveterado de charutos nunca usava roteiros em seus filmes, entregando muito ao acaso, às discussões no set ou ao talento de improvisação de seus atores. E entre eles estiveram praticamente todos os grandes nomes do cinema francês, de Eddie Constantine, Alain Delon, Michel Piccoli e Yves Montand a Gérard Depardieu e Juliette Binoche, além das já citadas Bardot e Huppert.
A ousadia de Godard também se manifestava no campo formal: seus ensaios fílmicos são “pensamento em forma de montagem”, descreveu em 2010 um crítico do jornal Frankfurter Rundschau, sua montagem cinematográfica é associativa como a improvisação no jazz.
Ele foi, ainda, um dos primeiros diretores franceses a rodar com uma câmera de vídeo leve e ágil. Foi com uma delas que, em 1968, acompanhou os Rolling Stones até o estúdio, para a produção de seu lendário álbum Sympathy for the Devil, resultando num documentário que permanece cult.
Recomeço no palco internacional
Sob a impressão dos protestos estudantis de maio de 1968, em Paris, Godard se ligou a um grupo cinematográfico marxista-leninista radical. A politização crescente de seu trabalho desencadeou uma briga com o amigo Truffaut. Em seguida, ele “desapareceu no coletivo”, passando a só filmar junto com outros, como notou um crítico na época.
Em 1980, Godard retornou ao palco do cinema internacional. Estrelado por Isabelle Huppert, Salve-se quem puder (a vida) era um título programático para o recomeço do cineasta maduro. Numa entrevista, ele descreveu este como seu “segundo primeiro filme”.
Uma Palma de Ouro em Cannes, o Prêmio Europeu de Cinema, um Oscar pelo conjunto da obra: até hoje tais honrarias públicas nada significam para o inquieto cineasta franco-suíço. Paletó e gravata, ele só pôs para receber em 2002 o altamente dotado Praemium Imperiale, considerado o “Nobel das artes”.
Provavelmente o revolucionário da sétima arte passará os 90 anos, em 3 de dezembro de 2020, fumando seu charuto em casa, em seu idílico lugarejo na Suíça, sem pompa, nem circunstância. Ainda assim: feliz aniversário, Jean-Luc Godard!