O termo distopia, que significa o contrário de utopia, não é recente.
Por José Couto Nogueira*
Na década de 1930, quando os regimes totalitários cresciam por toda a parte, quer fossem comunistas, quer fascistas, três escritores anglo-saxónicos publicaram romances que previam um futuro tenebroso para os seus países e para a Humanidade – aquilo a que chamamos distopias.
O termo distopia, que significa o contrário de utopia, não é recente. Uma utopia, ou seja, uma projecção do desenvolvimento social para uma sociedade ideal, igualitária e justa, vem do livro com o mesmo nome, publicado por Thomas Moore em 1516. Escrito em latim, relata a vida social, a estrutura política e as crenças duma ilha fictícia onde se vivia maravilhosamente, pois os problemas que sempre afectaram a humanidade tinham sido resolvidos.
Já o termo distopia, como oposto de utopia, deve-se a outro filósofo inglês, John Stuart Mill, que o cunhou em 1868, num discurso no Parlamento. No entanto não impressionou e não teve muita divulgação na época, nem as distopias ocuparam grande lugar na literatura durante décadas, se exceptuarmos algumas estórias de H. G. Wells, escritas na passagem do século XIX para o século XX.
Foi na década de 1930 que o perigo iminente dos regimes anti-humanistas levou estes três escritores a imaginar o que aconteceria se o poder ficasse na mão de homens providenciais.
Em 1932, o inglês Aldous Huxley deu à estampa “Brave New World” (“Admirável mundo novo” na edição em português) um livro que pretendia ser satírico e uma paródia de “Uma utopia moderna”, de H. G. Wells (1905). Mas o que saiu foi uma visão aterradora dum universo em que as pessoas são geneticamente manipuladas para nascer dentro de castas pré-determinadas e depois condicionadas para pensar e agir de certa maneira, sendo os seus sentimentos controlados e a força de vontade eliminada através da satisfação física. O mundo é um único Estado onde tudo é controlado, sem necessidade de violência. As personagens de Huxley andam entre Londres e o Novo México (onde o autor esteve), presas a questões sempre incómodas de amor, poder e controle – de si e dos outros.
Em 1935 o norte-americano Sinclair Lewis escreveu “It Can’t Happen Here” (“Isto não pode acontecer aqui”), cuja história é a ascensão política de Berzelius Windrip, que depois de derrotar Roosevelt nas eleições presidenciais vai transformando os Estados Unidos numa ditadura justificada com patriotismo e preservação dos “valores tradicionais”. A certa altura, para manter a unidade nacional contra um suposto inimigo comum, chega a invadir o México. A separação de poderes é eliminada e uma milícia patriótica vela para que os opositores sejam intimidados, detidos ou assassinados. Lewis inspirou-se em Huey Long, senador e governador do Louisiana que efectivamente ia candidatar-se à presidência contra Roosevelt. Manipulador, oportunista e demagogo, durante a sua governação deu assistência médica aos pobres e livros aos estudantes, construiu estradas e pontes que terminaram com o isolamento de muitas cidadezinhas perdidas e tomou outras medidas que o tornaram muito popular, ao mesmo tempo que destruía os adversários políticos impiedosamente. Só não sabemos se Long ganharia a Roosevelt porque foi assassinado por um inimigo político um ano antes das eleições.
Em 1949, já depois da II Guerra Mundial, quando os regimes comunistas, dirigidos por Estaline, eram uma ameaça às democracias, (o maoismo estava a consolidar-se na China) George Orwell publica a mais famosa de todas as distopias, “1984”. Orwell era socialista e esteve na Espanha durante a Guerra Civil, mas nunca foi comunista e via Estaline como um ditador. Ao que parece, foi ele a inspiração para o livro. “1984” descreve um mundo aterrador, dividido entre três países em guerra permanente, e onde as pessoas são controladas através da “novilíngua”, um vocabulário em que as palavras têm o significado ao oposto à sua etimologia. Paralelamente, as notícias são permanentemente refeitas para justificar as políticas do Governo e os arquivos alterados para corresponder às pormessas do Poder . É esta “realidade alternativa” que trouxe o livro para a lista dos mais vendidos da Amazon, quando a assessora de Trump, Kellyan Conway, usou o termo para definir o ponto de vista do Governo, contrário à evidência documental.
Nestes dias de grande agitação política, em que parece evidente que os paradigmas que regulavam o equilíbrio das democracias e da ordem mundial estão prestes a mudar, ou em mudança, não faltou quem se lembrasse das distopias de Huxley e Orwell. Será esse o “mundo novo” que nos espera? Mas há diferenças fundamentais no modo como os dois escritores prevêem o domínio das massas. O critico Neil Postman resumiu-as num ensaio de 1985 que vale a pena rever:
“O que Orwell receava era aqueles que proíbem livros; Huxley receava que se chegasse a uma situação em que não era necessário proibir livros, porque ninguém queria ler. Orwell temia que nos deprivassem da informação; Huxley temia que a informação fosse tão abundante que acabaríamos por nos tornar passivos e desinteressados. Orwell imaginava que nos escondessem a verdade; Huxley que a verdade se perdesse num mar de irrelevância. Orwell dizia que nos tornaríamos numa cultura controlada; Huxley falava da trivialização da cultura, preocupada apenas com pequenos sentimentos, festas bacantes (“orgy porgy”) e jogos digitais (“centrifugal bumblepuppy”). Huxley salientava que os libertários e os racionalistas, sempre prontos a opor-se à tirania “não conseguiram levar em conta o apetite quase infinito do Homem pelas distracções”. Em “1984” as pessoas são controladas pela dor. Em “Admirável mundo novo” o controle é exercido pelo prazer. Resumindo, Orwell receava que o medo nos destruísse, enquanto que Huxley temia que a nossa destruição fosse feita pelo desejo.”
Considerando o que se está a passar nos Estados Unidos na actualidade, parece que Huxley e Lewis estavam mais perto da realidade futura do que Orwell, apesar deste também ter acertado nos aspectos referentes à manipulação da linguagem e da informação. Do lado oposto, a governação do Estado Islâmico, da Coreia do Norte ou mesmo da Federação Russa tem mais semelhanças com o mundo de Orwell.
A actualidade é um processo em andamento; até chegarmos a uma nova estabilidade (boa ou má, não se sabe) ainda vamos passar por um caminho bastante acidentado e, sobretudo, imprevisível. É mais lógico esperar por uma distopia do que pelo sonho utópico. Esse optimismo foi possível na segunda metade do século passado, que infelizmente não cumpriu o que prometia. Ao longo da História muitas épocas difíceis têm ocorrido; a diferença é que agora acontece, à vista de toda a gente, em tempo real.
*O jornalista José Couto Nogueira, nascido em Lisboa, tem longa carreira feita dos dois lados do Atlântico. No Brasil foi chefe de redação da Vogue, redator da Status, colunista da Playboy e diretor da Around/AZ. Em Nova Iorque foi correspondente do Estado de São Paulo e da Bizz. Tem três romances publicados em Portugal.