Programa “Roda Viva” com Boni esqueceu de perguntar muita coisa ao ex-diretor da TV Globo

Boni: guerra não é contra a imprensa ou a TV, é contra a democracia - 14/09/2020 - UOL TV e Famosos

Boni foi homenageado, ao invés de ser entrevistado

Carlos Newton

A propósito de comemorar os 70 anos da televisão brasileira, o conceituado programa Roda Viva, da TV Cultura, entrevistou um dos mais festejados profissionais da comunicação brasileira, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, que comandou por 30 anos a Rede Globo de Televisão, ainda hoje uma das mais competentes e criativas do planeta.

O próprio Boni, ao ver os entrevistadores, não teve dúvida em afirmar que se tratava de uma roda de amigos, o que o deixava confortável, tal o respeito e admiração mútua existente entre eles e isto ficou patente ao longo do bem-sucedido programa, apresentado por Vera Magalhães, que, estranhamente, desta vez, interveio sem razão de ser no meio de algumas importantes respostas do entrevistado.

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PONTOS A ESCLARECER
 – Salamaleques à parte, alguns pontos da histórica entrevista ficaram mal esclarecidos. Vamos a eles:

1 – Boni era o maestro de uma orquestra de qualidade. Centralizava a gestão de produção da rede, colocando profissionais preparados em todas as áreas, cobrando de todos bons resultados. Tudo dependia de sua palavra final. Se assim era, por que “engoliu” a edição do debate de Lula com Collor,o que, sem dúvida, alterou o resultado final do pleito presidencial de 1989?

2 – Por que deixou que a Rede Globo, com informações imprecisas, propiciasse ao telespectador a convicção de que Leonel Brizola não estaria na frente, quando das apurações na eleição direta para governador do Rio de Janeiro?

3 – Por que concordou com a manipulação de informações para que o telespectador não se convencesse de que as Diretas Já seriam a melhor solução para o país?

4 – É verdade que todos os grandes veículos de comunicação sofreram censura e ameaças do governo militar, mas só a Globo, que se comunicava com mais de 70% da população brasileira, ficou à disposição das autoridades revolucionárias até 1985,dando-lhe incomensurável apoio e retardando a volta ao Estado Democrático de Direito no País.

5 – Boni não se sentiu amargurado e capacho ao não divulgar as atrocidades cometidas contra centenas de cidadãos? Isso não beira à cumplicidade e submissão por conta das bilionárias verbas oficiais que ajudaram a consolidar esse império de comunicação? Não seria melhor e mais sensato ter abdicado de tão poderosa função, em nome da verdade e do respeito aos direitos humanos, agredidos diuturnamente e cujos crimes eram ignorados e suas informações subtraídas de toda a população?

6 – O ex-presidente Médici, que era endeusado pela Rede Globo, referindo-se a essa organização, dirigida pelo maestro Boni, disse em certa ocasião que, depois de um dia de trabalho, assistir ao Jornal Nacional era relaxante demais, pois enquanto no mundo ocorriam greves, guerras e más notícias, aqui só víamos notícias positivas, nada que gerasse ansiedade, preocupação.

7 – Da emissora onde trabalhava Vladimir Herzog, na comemoração dos 70 anos da televisão brasileira, ninguém se lembrou durante o programa de perguntar a Boni por que a sua Rede silenciou e não deu ao seu assassinato o destaque que merecia? Homenagens póstumas não redimem a omissão e nem perdoam silêncio irresponsável.

8 – Quanto  aos canais de televisão que formam a Rede Globo, o do Rio foi concedido por Juscelino, que sempre foi atacado por Roberto Marinho, e o de Brasília por João Goulart. Os outros três foram comprados de terceiros. De quem? O de São Paulo, a antiga TV Paulista, foi usurpado de seus mais de 600 acionistas sem custo algum para Roberto Marinho, que, entre 1964 e 1977, administrou a emissora irregularmente, como atestou o Ministério Público Federal, com a conivência dos militares. Boni trabalhava lá e nunca se interessou por essa apropriação indébita? Na entrevista, Boni disse que, ao sair da Organização, gostaria memo de ficar com uma parte da sociedade, dando a entender que fez muito por merecer tal quinhão. E os verdadeiros acionistas da TV Paulista?

9 – Finalmente, ao falar de Walter Clark que, de fato, alavancou o crescimento da organização e que o apoiou incondicionalmente, Boni, sem maiores aprofundamentos, disse ter ouvido de Roberto Marinho a seguinte frase: “Eu perco a rede Globo, mas com Walter Clark eu não trabalho mais”. Seria ciúme ou desejo de implementação de nova gestão, mexendo em time que estava dando certo? Não seria por esse mesmo motivo que, posteriormente, Boni foi demitido pelos herdeiros de Roberto Marinho?

ENTREVISTA FAKE – Esse programa poderia ter sido bem melhor, não fosse a excessiva reverência de seus entrevistadores, que pareciam estar pedindo desculpas para se dirigir a um personagem que ao longo dos anos preferiu o estrelato e silenciou diante de ameaças de ditadores, que foram enfrentados por veículos independentes como  “Correio da Manhã”, “Tribuna da Imprensa”, “O Estado de S. Paulo”, “Pasquim”, “Movimento” e “Opinião”, sob o comando homens de comunicação que não se curvaram à ditadura.

Essa cumplicidade profissional não deve ser esquecida. Ninguém deve cumprir ordens profissionais que violem a constituição, a ética, a moral e os direitos humanos. É melhor perder o emprego do que entregar a dignidade.