Hoje faz uma semana que o vírus terrível levou para sempre Sérgio Sant’Anna. Hoje faz uma semana que a dor dessa lança cravada no meu peito não me deixa um minuto em paz.

Foi num dia qualquer do segundo semestre de 1971 que conheci Sérgio Sant’Anna. Ele tinha publicado um livro de contos, “O sobrevivente”, que eu não tinha lido. Mas era menção obrigatória, principalmente entre os mineiros que eram meus colegas de redação do “Jornal da Tarde”, como uma espécie de modelo a ser seguido.

Daquele primeiro encontro ficou a imagem falsa de alguém calado, retraído, olhos de piloto que vigiava o mundo de longe.

Sérgio tinha sido contemporâneo de Martha, minha companheira, na faculdade de Direito em Belo Horizonte, cidade onde ele passou 12 longos anos sem deixar, em nenhum único momento, de ser o carioca de sempre. Havia, além de Martha e de amigos compartilhados, outro ponto em comum: éramos torcedores do Fluminense, ele muito mais exacerbado que eu.

No começo de 1973, fui-me embora para a Argentina. Trocávamos cartas: as minhas, escritas a máquina; as dele, à mão, numa caligrafia pequena e disciplinada. Foi em Buenos Aires que recebi “Notas de Manfredo Rangel, repórter”, uma coletânea de contos que me ajudou a ser contista.

Ao longo dos dez anos e meio que passei longe do Brasil nossa correspondência foi se tornando mais esparsa.

Depois que voltei ao Rio, em agosto de 1983, passamos a nos ver com frequência. Lembro bem do apartamento dele nas Laranjeiras. Um apartamento monástico, franciscano, abarrotado de livros.

Bem: foi-se embora o Sérgio Sant’Anna, o Serginho que soube ser generoso comigo, com minha companheira, com meu filho Felipe.

Dia desses, para recordar como ele era, revi nossa conversa, em 2014, no programa “Sangue Latino” (Canal Brasil), criado e dirigido pelo Felipe e apresentado por mim. Trago aqui trechos do nosso diálogo, para registrar parte da imensidão que foi esse amigo levado embora.

A matéria-prima da escrita

— Qual é a sua matéria-prima: memória ou realidade?

— Eu uso muito a memória, uso a realidade, uso muito a minha subjetividade. Eu uso tudo. Eu uso muito, por exemplo, como matéria-prima, as artes plásticas. Se eu entro num museu, saio de lá cheio de ideias para escrever. Se eu for a uma peça de teatro, por exemplo — e não que eu goste tanto assim de teatro: ao contrário, vou pouco… —, aquela movimentação de bastidores, do palco, aquilo me movimenta para escrever. Então, minha matéria-prima é tudo.

A vida

— Vittorio Gassman, aquele grande ator italiano, dizia que a vida devia ser como o teatro: primeiro ensaiar, depois atuar. Você concorda?

— Não, eu não concordo, porque eu acho que o charme da vida está exatamente na surpresa. A grande surpresa da vida é você não saber o que vai acontecer.

O amor

— E o amor?

— Bem, o amor é tudo, não é? O amor é um sentimento que, quando existe, exalta o ser humano. Quando duas pessoas estão se gostando, a vida se transfigura. E eu sinto falta.

A arte

— No que você acredita?

— Eu acredito, por dever de ofício — por dever, não: por questão de ofício… — eu acredito em arte. Porque eu acho que a arte é uma utopia. E acredito também no amor. As pessoas, quando estão amando, elas são absolutamente crentes, não é? Naquele momento, tudo parece que vai durar para sempre. E a questão aqui é o “naquele momento”. Depois passa. As pessoas podem até passar a vida juntas, se gostando, mas aquele amor, aquela paixão, e eu acredito na paixão, ela não dura. Infelizmente, não dura.

A função da arte

— Para você, qual é a função da arte?

— Ela tem a função de fazer o ser humano pensar, sentir, enfim, a arte permite ao ser humano fazer um voo mais alto.

O ofício

— Nós somos de uma geração que falava do medo da página em branco. Você continua com esse medo?

— Esse medo existe, e eu nem acho que seja uma questão de geração. Eu acho que o computador criou uma ilusão nas pessoas de que é mais fácil escrever… O computador é fácil de usar. Você digita, e parece que aquilo sai limpinho, bonitinho, e a impressão que você tem é a de que escreveu uma coisa muito boa. Já quando você escreve à mão, eu acho que fica mais exigente. Eu escrevo, rabisco, reescrevo, e, quando alguma coisa começa a dar certo, é o momento em que fico feliz. Eu até paro. É uma coisa que Hemingway dizia, ele gostava de parar uma obra no momento em que sabia como ia continuar no dia seguinte. Eu acho um ótimo conselho. Comigo acontece muito isso: se por acaso escrevo uma coisa que me agrada, eu paro em vez de continuar.

O nosso legado

— Que legado a nossa geração deixou ou vai deixar?

— Um legado que sem dúvida a nossa geração deixou foi o da luta pela liberdade. Nossa geração lutou, e esse é o nosso principal legado.

A morte

— Você acredita em alguma forma de vida depois da morte?

— Eu acho que depois da morte, acabou. Não acredito em vida depois da morte. Morrer é não existir.

* Eric Nepomuceno é jornalista, escritor e tradutor