Escritores e críticos homenageiam um dos gigantes da literatura brasileira: o carioca Sérgio Sant’Anna, morto por COVID-19. Ele deixou obras que exploraram a relação das letras com o teatro e as artes visuais
Por Carlos Marcelo – EM
“Abdicar das palavras e fazer da vida um livro não escrito que se escreve a cada momento”, desejou o escritor Carlos Santeiro, morador de Copacabana, recém-chegado de Minas Gerais. Ainda bem que o carioca Sérgio Sant’Anna ignorou a vontade de seu personagem em Um romance de geração (1980) e não renunciou às palavras. Morto no início da semana pela COVID-19 no Rio de Janeiro, aos 78 anos, Sant’Anna não precisou vestir o fardão da Academia Brasileira de Letras para tecer uma obra impermeável ao tempo. A destreza no manejo da linguagem, a interseção com as outras artes, o tesão da escrita estão impressos em cada uma das narrativas que deixou como bússola e legado.
“São muitos os ensinamentos que Sant’Anna deixa para quem começa a escrever: entregar-se à escrita com paixão e lucidez ao mesmo tempo, sem se render a fórmulas e convenções; experimentar com ousadia a linguagem e suas fronteiras; ser contemporâneo de seu próprio tempo e, simultaneamente, reinventá-lo pela imaginação”, acredita a escritora mineira Maria Esther Maciel.
Autor de Escrever ficção: um manual de criação literária, o gaúcho Luiz Antônio de Assis Brasil recomenda aos que começam: “Sugiro aprender duas coisas com Sérgio Sant’Anna: em primeiro lugar, a clareza do texto e das histórias, que abominam todo ranço, toda literatice. Em segundo lugar, a sabedoria e elegância na construção do subtexto – essa instância invisível e dramática que verdadeiramente é capaz de atingir o leitor.”
Por meio de depoimentos e análises de colegas e críticos, esta edição especial do Pensar homenageia um dos gigantes da literatura brasileira. Em 50 anos de atividade literária, iniciada em Belo Horizonte em 1969 com a publicação de O sobrevivente, Sérgio Sant’Anna escreveu contos, novelas, poemas, romances. Viveu para escrever. E a escrita, potente e porosa, sobreviverá à morte.
Sua editora, Companhia das Letras, informou que lançará um livro concluído pelo escritor poucos dias antes de ser internado e seguirá com as reedições de títulos – a mais recente é Amazona, lançado originalmente em 1986. Os próximos são Notas de Manfredo Rangel, repórter (A respeito de Kramer), posfácio assinado por Gustavo Pacheco, e Breve história do espírito, com posfácio de José Geraldo Couto.
“Além da singularidade, o que mais me impressiona no Sérgio Sant’Anna é a inquietação permanente, que lhe permitiu transitar entre os gêneros literários e buscar as mais diversas formas de intersecção (ou colisão) entre eles, bem como as interações entre a literatura e outras artes: o teatro, a música, o cinema. É como se sempre o texto literário quisesse ir além de si próprio, romper seus limites”, afirma José Geraldo.
Ainda faltam alguns, entre eles os Contos e novelas reunidos, editados em capa dura em 1997, com a assinatura do autor na primeira página. Quem sabe um dia, quando o Brasil voltar a ter leitores em número condizente com um país continental.
Em Um conto obscuro, do magnífico O voo da madrugada, Sant’Anna decodifica o próprio DNA e indica o itinerário da inspiração até o ponto final. É um caminho perfumado com “aromas de textos não escritos, ideias perdidas para sempre, composições, meandros, nuanças melódicas, a materialização de ilusões e fantasias, o dom da graça e da poesia, a língua está aí, mãe inesgotável, à espera de que você beba nela, qualquer impossibilidade é toda sua, este ser que não pode ser nenhum outro, abismado, verdadeiramente obscuro é o contista”, traçado por um homem “comum com a sua angústia, um rosto sofrido e anônimo na multidão” e que vive sob a ameaça de “um fracasso tão mortificante que poderia ser fatal, um algoz interno que diz: ‘Você está acabado, cara’.”
Obras reunidas de Sérgio Sant’Anna
- O sobrevivente (1969)
- Notas de Manfredo Rangel, repórter (A respeito de Kramer, 1973)
- Confissões de Ralfo (uma autobiografia imaginária, 1975)
- Simulacros (1977)
- Circo (Poema permutacional para computador, cartão e perfuratriz, 1980)
- Um romance de geração (1981)
- O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982)
- Junk-Box (Uma tragicomédia nos tristes trópicos, 1984)
- Amazona (1986)
- A senhorita Simpson (histórias, 1989)
- A tragédia brasileira (romance-teatro, 1987)
- Breve história do espírito (1991)
- O monstro (três histórias de amor, 1994)
- Um crime delicado (1997)
- O voo da madrugada (2004)
- O livro de Praga: narrativas de amor e arte (2011)
- Páginas sem glória (dois contos e uma novela, 2012)
- O homem-mulher (contos, 2014)
- O conto zero e outras histórias (2016)
- Anjo noturno (narrativas, 2017)
- Coletâneas
- Contos e novelas reunidos (1997)
- 50 contos e três novelas (2007)
- O sobrevivente (1969)
- Notas de Manfredo Rangel, repórter (A respeito de Kramer, 1973)
- Confissões de Ralfo (uma autobiografia imaginária, 1975)
- Simulacros (1977)
- Circo (Poema permutacional para computador, cartão e perfuratriz, 1980)
- Um romance de geração (1981)
- O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982)
- Junk-Box (Uma tragicomédia nos tristes trópicos, 1984)
- Amazona (1986)
- A senhorita Simpson (histórias, 1989)
- A tragédia brasileira (romance-teatro, 1987)
- Breve história do espírito (1991)
- O monstro (três histórias de amor, 1994)
- Um crime delicado (1997)
- O voo da madrugada (2004)
- O livro de Praga: narrativas de amor e arte (2011)
- Páginas sem glória (dois contos e uma novela, 2012)
- O homem-mulher (contos, 2014)
- O conto zero e outras histórias (2016)
- Anjo noturno (narrativas, 2017)
Coletâneas de Sérgio Sant’Anna
- Contos e novelas reunidos (1997)
- 50 contos e três novelas (2007)
Como ele contou
Escritores e críticos narram convívio com Sérgio Sant’Anna
Autores utilizam suas ferramentas de trabalho para descrever a vida com o escritor carioca e o impacto de sua obra
A noite, a bolsa, o palco e Satie
Falou que tinha muito prazer em ler os jovens escritores brasileiros. Falou que se sentia como o Satie – só que, agora, perto dos oitenta. Foi uma noite memorável: a sensação era de que um dos maiores escritores vivos não tinha envelhecido. Continuava brilhante, ativo, autêntico, generoso, mordaz. Não sabíamos que era uma despedida.”
Alice Sant’Anna é poeta e editora de Sérgio Sant’Anna na Companhia das Letras
O recado de Sant’Anna para o leitor não era muito subliminar: está sempre à procura do conto, do conto total, estilo Mallarmé, para encerrar e compreender todos os outros contos. Por essas e por outras devo ter errado quando decidi fazer dissertação de mestrado intitulada ‘A autobiografia do outro a respeito de um romance de Sant’Anna, Confissões de Ralfo (1975)’. Se tivesse entendido que o romance é apenas variante do conto no caso desse escritor, talvez pudesse ter acertado. Mas passei longe, nem te conto.”
Pólvora, suor e cérebro
Cada texto seu parece fundar uma nova ideia do que é um texto. Ficção, memória, teatro, poesia, ensaio, descrição e pensamento se atravessam em romances, novelas e contos, como se, feito no conto Cenários, ele nos dissesse: ‘Não, não é bem isso’. Sérgio era um investigador carnal da escrita. Aos vinte e cinco anos, enviei um conto para ele e pedi sua opinião. No final da tarde do mesmo dia, Sérgio respondeu. Generosíssimo, me ofereceu palavras que guardo como um troféu. Eu não tinha publicado nada. Era o ano de 2010 e Sérgio, aos 68 anos, dava a largada para a sua última década de criação, que desaguou em cinco livros urgentes, cinco livros milagrosos. Que, como toda a sua obra, são pólvora.”
Leonardo Villa-Forte é escritor, autor de Escrever sem escrever
Meandros urbanos, infernos íntimos
Já nos cursos sobre literatura contemporânea brasileira, os contos, novelas e romances do autor são exemplares para o enfoque literário de questões importantes do Brasil ao longo das últimas cinco décadas, já que Sant’Anna sempre foi um exímio (e originalíssimo) intérprete dos acontecimentos políticos e sociais do país. Além disso, explorou os meandros da vida urbana, sondando ainda, por vias surpreendentes, os infernos íntimos dos personagens.”
Maria Esther Maciel é professora e escritora, autora de O livro dos nomes
Da arte dos encontros
Beatriz Resende é crítica literária, ensaísta e professora da Faculdade de Letras da UFRJ
Poderoso horizonte
Leitor exigente e sensível, comentou em detalhes vários de meus trabalhos e presenteou-me com um belo prefácio para o Saber de pedra: o livro das estátuas. Nos últimos anos, Sérgio contribuiu, com entusiasmo, em dois projetos especiais para mim: a edição comemorativa dos 50 anos da RL – Revista Literária, da UFMG, veículo que publicou seu primeiro conto, e o livro Canção de amor para João Gilberto Noll, de quem era admirador. Olhando o grande volume de cartas, originais, livros, dedicatórias e e-mails que trocamos ao longo das três últimas décadas, bate um forte aperto no coração.
Talvez seja a profunda tristeza de saber que a fonte desse horizonte não está mais com a gente. Talvez seja a gratidão por ter vivido em um horizonte tão vasto. Talvez seja o consolo por pensar que horizontes não se dissipam, e sim se deslocam e se renovam. Em minha vida e na cultura brasileira, hoje tão vilipendiada, Sérgio foi, e auspiciosamente continuará sendo, um homem-horizonte.”
Sempre curioso, nunca acomodado
Quando nos tornamos amigos, ele estava prestes a completar meio século de carreira literária e eu tinha acabado de publicar meu primeiro livro. Para minha surpresa, não só ele não tinha qualquer empáfia como estava genuinamente interessado no que gente mais jovem tinha a dizer. ‘O país já é tão fodido… então eu gosto muito quando sai alguma coisa boa daqui’, ele dizia, ao elogiar algum dos vários livros que recebia de escritores iniciantes. Essa postura receptiva e generosa para mim é a síntese do Sérgio, não só como ser humano, mas também como artista de primeiríssima grandeza, nunca acomodado, sempre curioso e aberto à novidade.”
De brincadeira. E muito a sério
Ninguém a levou mais a sério e ninguém brincou mais com ela. Sérgio inventou praticamente sozinho nosso pós-modernismo, e ao mesmo tempo nossa crítica do pós-modernismo. Num país continental que tende ao ensimesmamento, muitas vezes ao paroquial, foi radicalmente cosmopolita, conversou com todas as vanguardas reais ou imaginárias, sem nenhuma sombra de deslumbramento e sem jamais se afastar do lastro do seu bairro, da sua cultura, da sua língua. A literatura brasileira mal começou a entender o tamanho da herança que ele deixa.”
A literatura como vida
A literatura era a sua vida e, quando esta lhe faltava, ele a inventava. Quando morre um escritor dessa estirpe eu choro em silêncio e fico de luto (foi assim com João Gilberto Noll, outro gigante). Depois, abro uma garrafa de vinho, pego um de seus livros e começo a ler, até sentir de novo a velha certeza. Até sentir que, naquele instante, a vida não consegue ser maior do que aquilo que estou lendo.”
Liquidações do início ao fim
Já o André, como eu o ignorava então, também não tinha como adivinhar que seria o mesmo André Sant’Anna que assinaria a orelha do meu romance de estreia, a ser publicado a dez anos dali, num futuro acidental. Depois disso, li tudo do Sérgio, sempre embasbacado. Até o conhecer pelo André, que virou meu amigo, e receber, autografados, A tragédia brasileira e Junk-Box, este último editado, vejam só, não era coincidência, por Tião Nunes himself. E o circo se fechou.
A partir daí conheci meu apogeu ao dividir o picadeiro com Sérgio Sant’Anna na Feira de Frankfurt, na qual o Brasil foi homenageado em 2013, honra impensável para mim (a companhia do Sérgio, não a homenagem ao Brasil). Então não me furtei a dizer o que repito agora: que Sérgio Sant’Anna está entre os maiores escritores mundiais do século 21. E tenho dito, ou melhor, tenho lido o Sérgio desde aquela liquidação, e continuarei a lê-lo até o final dessa nova liquidação que sofremos hoje, e depois. E sempre.”
Carne, osso e bolsa de tecido
Chega você e a tensão se dissipa de imediato diante da visão da sacolinha de pano a tiracolo, cheia de livros, detalhe banal que me diz muito e humaniza a lenda. Você foi absolutamente doce, as monstruosidades ficam no papel. Essa a memória que permanece do homem de carne, osso e bolsinha de tecido. Respeito muito a emoção das despedidas, mas considero igualmente o impacto das primeiras vezes. Torço, como professora, que os anjos, cenários, madrugadas, simulacros, confissões e todo o banquete servido em suas páginas chegue em mais e mais leitores.”
Do assombro ao acolhimento
Agarrei-me ao livro de capa um tanto brega e percorri a prosa poética, experimental, audaciosa de um escritor que me acompanha desde sempre. Mais de vinte anos após aquele inesquecível encontro, conheci-o pessoalmente ao convidá-lo para o projeto Paiol Literário. No auge da carreira, em 2009, sentou-se no centro do palco e, num misto de timidez e ironia, encantou o público por quase duas horas. Na plateia, olhava-o com a admiração juvenil e o espanto daqueles anos de descoberta. Logo de iInício, uma frase simples, mas certeira, atingiu-me: “Acho que a literatura pode mudar as pessoas individualmente. Mas sou um homem cheio de dúvidas”.
Um ateliê de portas abertas
Sinto que perdemos o mais contemporâneo dos contemporâneos, sua partida nos deixa órfãos de presente. E em um país que já está encolhendo. Entre tantas mortes trágicas, em menos de um mês perdemos os dois maiores escritores vivos do Brasil: Fonseca e Sant’Anna, o segundo em ebulição criativa até o final. É como se o Brasil estivesse se vingando de si mesmo.”
A metamorfose do cotidiano
Há, nesse dia a dia, algo que atrai, na medida em que nos sentimos incluídos numa existência factual, tão familiar, mas que, também, nos afasta dali, seduzindo-nos com uma universalidade sinistra, metafísica, devoradora, capaz de nos jogar em cheio num espaço e num tempo transfigurados, mas que sabemos habitar em nós; ignorando isso, as personagens agem desnorteadas, aleatoriamente, como vítimas de uma força obscura da qual não atinam a extensão e a capacidade destruidora: é como se estivessem numa permanente pandemia, atiçada por um imperador maluco. A obra de Sérgio Sant’Anna permanecerá, ao lado das obras de Machado, Guimarães, Graciliano, e serão sempre capítulos exclusivos de nossa cultura.”
Um contista por excelência
De volta ao Rio, sem nunca perder o vínculo com Minas, nem com os amigos, Sérgio Sant’Anna se tornou um dos grandes escritores brasileiros. Foi um contista por excelência; exigente ao extremo com sua escrita, e fez escola. A ele devo a leitura dos originais do meu primeiro livro, O sol nas paredes, a alegria de tê-lo entrevistado algumas vezes para o Estado de Minas, e o privilégio de ser seu leitor.”
Sem medo de se revelar
Depois conversamos sobre relacionamentos amorosos, futebol e artes plásticas. Porque, como você mesmo fala, a literatura só pode vir das nossas experiências: tantos as prazerosas quanto as angustiantes. Mas afinal, você leu ou não a Ali Smith? Aguardo sua resposta.
O experimentalismo que não é estéril
O talento de Sant’Anna é tão evidente quanto o domínio que ele demonstra nos mais diversos registros. Há sempre um espaço generoso para que as vozes (dos personagens, das memórias e mesmo dos objetos) tomem as narrativas para si, coisa que me parece bastante difícil de se fazer, sobretudo no âmbito das formas breves. Só agora percebi ter escrito estas linhas no tempo presente. É uma forma de acusar o golpe, de sublinhar a perda, talvez. E, claro, de reiterar o fato de que a obra permanece.”
Um dos motores da Geração Suplemento
Nossos encontros nos fins de tarde no Saloon, bar que ficava no quarteirão de baixo do Suplemento, contava com a presença constante de Fernando Brant, o que atraía os músicos do Clube da Esquina, do 14-Bis e variada fauna daqueles tempos efervescentes e criativos. Foi uma amizade tão firme quanto nossa devoção ao Fluminense Futebol Clube. Ele foi um dos irmãos homens que não tive. E o grande escritor da minha geração.”