AS PANDEMIAS E NECESSÁRIAS RESIGNIFICAÇÕES SOB O OLHAR DA BIOÉTICA. Por Andréa Keust Bandeira de Melo 


Por Andréa Keust Bandeira de Melo 

Falar em pandemias nos remete logo a uma palavra – CAOS. Na mitologia grega, Caos seria interpretado como o “vazio” ou o “ar” que preenchia o espaço entre a Terra e o Éter (céu superior). Este significado se originou a partir da etimologia da palavra “caos”, derivada do grego khaíno, que pode ser traduzido como “separar”. A relação do Caos com a desordem e o desequilíbrio só foi atribuída pelo poeta romano Ovídio. Caos passou a ser visto como um oposto de seu filho, Eros. Ou seja, enquanto Eros (ou amor) representava a união das forças e elementos, o Caos simbolizava a quebra, cisão e separação. E é justamente essa quebra de paradigmas, a separação forçada do convívio social, a cisão das nossas mais simples rotinas e a quebra de equilíbrio do nosso “mundo interior”.

Desde o final de novembro de 2019, enquanto estávamos preocupados com a celebração das festas de final de ano, os alarmes sobre uma nova doença soavam na China. O primeiro ser humano infectado que é chamado de paciente 0, provavelmente apresentou os primeiros sinais de uma síndrome respiratória aguda, como podemos aferir da notícia veiculada no site Galileu2. Em 15 de dezembro o número de infectados já era de 266. Já nos primeiros dias de janeiro, as notícias da possível pandemia de um vírus chamado inicialmente de coronavírus assustava o mundo. Em 12.02.2020, a Organização Mundial da Saúde, passou a chamá-lo de COVID-19 (do inglês Coronavirus Disease 2019). Já para o Comitê Internacional de Toxomia de Vírus, ele foi designado como SARS-CoV-2. O vírus foi identificado pela primeira vez em seres humanos na cidade de Wuhan, na China, local que tornou-se o epicentro da doença que, em breve, se tornaria uma tragédia mundial.

O cuidado na denominação teve por foco evitar que o nome provocasse estigmatização de qualquer grupo de pessoas, país, ou ainda, que se referisse a uma
1 Andréa Keust Bandeira de Melo – Formada em Direito pela UFPE em 1990, especialização em Processo Civil pela UNIPÊ em 1994, Pós Graduada em Direito à Saúde e Direito Médico pela UNIVASF em 2016, Pós Graduada em Psicologia Jurídica pela Faculdade IDE em 2020. Juíza do Trabalho do TRT 6a Região, atualmente titular da 8ª Vara do Trabalho do Recife
2 https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2020/03/china-identifica-pessoa-que-pode-ter-sido-paciente- zero-da-covid-19.html

localização geográfica. Também foi observada a necessidade de precisão e de que o nome pudesse ser pronunciado de uma forma fácil. O numeral 19, refere-se ao ano em que foi iniciado o surto (relatado à OMS em 31.12.2019). O Covid-19 causa a síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV2), que é uma doença infecciosa cujo período e incubação dura de 1 a 14 dias, sendo mais comum a manifestação no 5º dia. Os sintomas mais comuns são febre, tosse e dificuldade de respirar. Contudo, com o desenrolar do acompanhamento clínico, cientistas chineses, em estudo publicado em 10.04.2020, descobriram que pessoas infectadas pelo SARS-CoV2 podem também manifestar problemas de foro neurológico de três tipos. O primeiro atinge o sistema nervoso central, acarretando tonturas, alterações da consciência, convulsões, etc. O segundo relaciona-se com o sistema nervoso periférico, gerando alterações no paladar, do olfato ou da visão e por fim, os que estão associados a lesões musculares3. A transmissão se dá através de gotículas produzidas nas vias respiratórias dos infectados que, ao espirrar ou tossir, são liberadas e podem ser inaladas ou atingir diretamente nariz, olhos ou boca de pessoas próximas. Essas gotículas também podem ser depositadas em objetos e superfícies e contaminar quem nelas toque e leve as mãos à boca, nariz ou olhos. Assim 2020 passará para a História como o ano da pandemia de COVID-19.

Mas as pandemias não são novidades. Bactérias, vírus e outros micro- organismos causaram estragos tão grandes a humanidade quanto as guerras, e também desastres como incêndios, terremotos, tsunamis e erupções vulcânicas. Tivemos a peste negra, ou peste bubônica entre os anos de 1333 e 1351, que foi a maior epidemia que atingiu a Europa no Século XIV. Ela foi combatida com a melhoria da higiene e o saneamento das cidades, bem como o controle da praga de ratos urbanos. Entre os anos de 1817 e 1824, tivemos o surto do Cólera (vibrio cholerae), causando morte a centena de milhares de seres humanos e onde a bactéria se aloja no intestino e elimina uma toxina que provoca diarreia intensa. Essa foi considerada a 1ª Pandemia. Já entre os anos de 1850 a 1950 a Tuberculose, transmitida pelo bacilo de Koch, e que é altamente contagiosa e ataca os pulmões, dizimou muitos humanos. O combate foi acelerado em 1882 contudo, nas últimas décadas, a tuberculose ressurgiu com grande força em países de pouco desenvolvimento, inclusive no Brasil. A varíola que atormentou a humanidade 3https://br.sputniknews.com/ciencia_tecnologia/2020041215449695-novos-sintomas-de-covid-19-descobertos-por- neurologistas-chineses/

por mais de 3 mil anos, atingindo pessoas como o famoso Faraó egípcio Ramsés II, a rainha Maria II da Inglaterra e o Rei Luís XV da França, sendo denominada de “Bixiga”. O Orthovirus era transmitido de pessoa a pessoa, geralmente pelas vias aéreas e causava febre, seguida de erupções na garganta, na boca e rosto, e em seguida espalhava-se pelo corpo deixando cicatrizes. A vacina contra a varíola foi descoberta rem 1796 e a doença só foi erradicada em 1980.

Sem dúvidas a maior das pandemias passadas foi a batizada de Gripe Espanhola, causada pelo vírus Influenza trazendo um saldo de 20 milhões de mortos entre os anos de 1918 e 1919. Esse vírus está em permanente mutação e por isso, nunca estamos imunes, muito embora existam vacinas. O Tifo também deixou um saldo de 3 milhões de mortos na Europa Ocidental e Rússia entre os anos de 1918 e 1922. Mais recentemente, tivemos o surto de Febre Amarela entre os anos de 1960 e 1962, cujo Flavivírus é transmitido pela picada de mosquito que antes, picou pessoa contaminada. O Sarampo, altamente contagioso e causado pelo vírus Orbillivirus acarreatando cerca de 67 milhões de mortos até 1963, quando houve a descoberta da vacina que foi aperfeiçoada. Em 2019, vimos esta doença ressurgir no Brasil, após o grande volume de imigrantes venezuelanos transporem as fronteiras sem a devida imunização. Podemos ainda citar os surtos de Dengue, da Zyca e da Chikungunya que sacudiram o Brasil, sobretudo nos últimos 05 anos e a cada ano o perigo de retomada dessas doenças ressurge e causa medo à população.

Mas será que tiramos alguns ensinamentos de todas essas doenças? Para responder a essa questão, temos que adentrar nos problemas ou as fontes gastadoras dessas doenças.

A grande maioria das pandemias se propaga por falta de condições adequadas de higiene e de saneamento básico. Em pleno século XXI continuamos utilizando de 12 a 15 litros de água por descarga acionada nos vasos sanitários que, segundo nos conta a História, eram utilizados na forma de espaços públicos nas cidades greco-romanas e, apenas em 1596, o poeta inglês Jonh Harington, em 1778, descreveu o que seria hoje o vaso sanitário “moderno”, com descarga. Joseph Bramah melhorou o invento. Apenas em 1739 foi criado em Paris o primeiro banheiro público com divisão por sexos. Em 1885, Thomas Twyford lançou os primeiros sanitários de porcelana em substituição às

peças que eram de madeira. Diuturnamente despejamos milhões de litros de água contaminada com dejetos, sem o devido tratamento nos rios e mares. Bill Gates, em seus inventos visionários, já desenvolveu e apresentou ao mundo em 07.11.2018, vinte novos projetos de vasos sanitários, que funcionam sem água e processam os resíduos4. Mesmo assim, não vimos o interesse das indústrias na produção, como embora com as tecnologias de esterilização de dejetos humanos, poderíamos evitar muitas mortes.

Outra fonte de grande preocupação é a geração constante de resíduos infectantes. Nesta nova pandemia, o uso de máscaras de proteção respiratória é aconselhado para toda a população. Levando-se em conta que grande parte dessas máscaras, são descartadas após o uso, como também o são os papéis e lenços higiênicos, o lixo produzido não é devidamente destinado, já que a maioria da população descarta essas máscaras e papéis em lixos residenciais. Podemos estar gerando um grande problema futuro, já que o lixo infectado tem regras próprias para descarte. Soma-se a isso, o grande volume de sacos plásticos utilizados pela população para inserir e descartar o lixo, que se avolumam em aterros sanitários. O correto não seria estarmos cuidando de incinerar esse lixo?

Por outro lado, mesmo passada a pandemia do cólera e as infecções por Salmonella e Rotavírus continuamos a ingerir alimentos sem o devido asseio ou cozimento. Aliás, ingerir crustáceos e peixes crus virou moda nas últimas duas décadas. Utilizamos espaços confinados seja para trabalho ou diversão, sem falar nos transportes de massa onde pessoas são comprimidas em minúsculos espaços, muitas vezes, sem condições de segurança. Continuamos a ver acidentes de trabalho acontecerem porque não se fornece equipamentos de proteção. Seguimos sem a devida preocupação com a higienização de espaços comuns e ingressamos em casa com sapatos que utilizamos nas ruas.

A pandemia de COVID-19 só nos mostra o nosso despreparo. Hoje a transmissão viral ou bacteriana ocorre em velocidade exponencial, em face da locomoção do ser humano em aviões, trens de alta velocidade, navios e tantas outras formas de transporte. Não dependemos mais de charretes, carruagens, ou dos cavalos,4 https://brasil.elpais.com/brasil/2018/11/07/tecnologia/1541613572_180890.html jumentos, burros e camelos tão utilizados nos séculos passados para transporte. A contaminação pode ocorrer em horas, minutos ou segundos. Não se tem mais fronteiras em face do mundo globalizado.
Temos formas de comunicação instantâneas, o desenvolvimento galopante da genética, epigenética e biotecnologias. Milhares de cientistas e pesquisadores espelhados pelo mundo. Temos o desenvolvimento tecnológico sem precedentes. A robótica e a informática estão em nossas vidas. Mesmo diante de todo o desenvolvimento inquestionável de nossa Era, várias perguntas persistem, e dentre elas estão as principais: como é que sucumbimos diante de situação atípica como a que vivemos em face da pandemia? Por que o isolamento social foi necessário? Por que o mundo parou? De onde surgiu esse vírus tão poderoso e de disseminação tão rápida? As respostas não são simples. Na verdade, existem constatações e muitas outras perguntas. Primeiramente, temos que verificar a diversidade de estágios de desenvolvimento das diversas nações e a preocupação com o bem maior, que é a vida humana. Será que estamos mais preocupados em desenvolver tecnologias do que dar uma real infraestrutura para as cidades? Em dados recentes, a situação da coleta de esgoto no Brasil é a mais precária dentre os serviços de saneamento – apenas 66% das casas brasileiras têm acesso à rede, segundo a Pnad de 2018 e dados da SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento) de 2017, em todo o Brasil, apenas 73,7% do esgoto coletado é tratado. Jogamos fezes e urina diretamente nos mananciais de águas que consumimos! Quatro milhões de brasileiros não tem banheiro5. O Brasil tem um dos maiores mananciais hídricos de água doce do mundo e mesmo assim, não chega água às torneiras de muitos cidadãos. Garantir o acesso à água de qualidade para os brasileiros é outro grande desafios para os gestores do país, como já anunciava a Agência Brasil em 20186. Assim, como podemos falar em higienização das mãos, lavagem de roupas, asseio de espaços públicos quando não existe sistema de abastecimento de água potável para todos?

Mudando um pouco de foco, as formas de evitar o contágio trazidas nesta pandemia da era digital, não diferem muito das veiculadas para evitar o contágio no século passado. Vejamos na foto abaixo, os “conselhos ao povo”.5 http://www.tratabrasil.org.br/saneamento/principais-estatisticas/no-brasil/dados-regionais
6 https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-10/agua-no-brasil-da-abundancia-escassez

Penso que muito pouco difere das medidas de isolamento social tomadas pelos governos de várias nações. Em Pernambuco, estado onde resido, o Decreto 48.809 de 14.03.2020 traça as linhas gerais de enfrentamento à nova pandemia7. É de fácil constatação que aprendemos muito desde 1918. Avançamos tanto na parte tecnológica e pouco na parte da higiene e cuidados nas construções das cidades. Contudo, será que não evoluímos em nada? Como ficam as questões ligadas à saúde e as relações dos profissionais de saúde com os pacientes? E as questões referentes à aquisição e distribuição de bens necessários ao combate das doenças, como as medicações, os equipamentos e insumos para os cuidados médicos?

Em meio a esse cenário difícil, vemos a Bioética, que desde que nasceu por volta dos anos 70, estuda a ética da vida, trazendo uma metodologia para analisar os casos concretos e os problemas éticos que emergem das práticas da assistência médica. Os princípios Bioéticos nunca se fizeram tão importantes, pois, embora não tenham caráter absoluto e não haja prioridade de um sobre outro; servem como regras gerais para orientar tomadas de decisão frente a problemas éticos e para ordenar os argumentos nas mais variadas discussões entre as relações dos profissionais de saúde e de seus pacientes. Esses são os 4 princípios primordiais que passaremos a analisar: 1 –7 https://legis.alepe.pe.gov.br/texto.aspx?id=49417&tipo=TEXTOATUALIZADO beneficência; 2 – a não maleficência; 3 – autonomia; 4 – justiça. Pretendo explicá-los fazendo um paralelo com a nossa atual situação e lançar algumas constatações.

Vivemos uma verdadeira situação de explosão de necessidades. De um lado, temos a população que é atingida pelo COVID-19, e busca atendimento em unidades de saúde, esbarrando com toda a sorte de “faltas”. Segundo as informações veiculadas nas mídias de todo o mundo, faltam leitos, faltam vagas em UTIs, faltam respiradores, faltam medicações. Muitos desses pacientes já chegam aos hospitais em estado gravíssimo. De outro lado, os profissionais de saúde trabalhando em intermináveis turnos, sem contarem com a segurança necessária. Muitos desses profissionais estão sendo infectados e padecendo. Outro caos se verifica em relação aos falecidos, pois em alguns países o número de óbitos é bastante superior à capacidade das funerárias e dos cemitérios em promover os sepultamentos.

Começo tecendo comentário ao princípio da 1 – beneficência, cujas bases são: 1.1-fazer o bem é um dever; 1.2 – é obrigação ética de maximizar os benefícios e minimizar os danos e prejuízos; 1.3 – reconhecimento do bem supremo que é a vida humana e do reconhecimento de sua dignidade, que transcende seus aspectos materiais, qualquer que seja a situação biológica, econômica ou culturas em que o indivíduo se encontre; 1.4 – assegurar o bem estar das pessoas, evitando danos e garantindo que sejam atendidos seus interesses; 1.5 – evitar submeter o paciente a intervenções cujo sofrimento resultante seja maior do que o benefício eventualmente conseguido.

Em meio à pandemia, a preservação da vida humana deve ser o farol norteador das atitudes. Mas será que é assim que estamos agindo? Em meio à falta de recursos para atender a todos, é necessário que seja verificado se o paciente está em sofrimento e qual seriam as reais chances de uma recuperação desse paciente e assegurar-lhe o atendimento. Recebemos diariamente várias denúncias de que mortes ocorridas por outros motivos, ou mesmo sem a efetiva testagem, estão sendo atribuídas ao COVID-19 para robustecer estatísticas que justifiquem algumas medidas tomadas pelos Estados e Municípios. Basta uma simples busca na Internet para nos depararmos com essa triste realidade. A exemplo de diversos sites.88https://brasil.elpais.com/politica/2020-03-31/mortes-sem-diagnostico-levantam-suspeita-de-
subnotificacao-de-casos-do-coronavirus-em-sao-paulo.html

Também estamos em meio a uma alucinante busca por uma vacina ou a combinação certa de medicamentos conhecidos para que se consiga debelar a infecção do COVID-19. Sempre que aparece uma doença causada por um vírus novo, como o Sars-Cov-2 agora, os cientistas começam a correr contra o tempo em busca de um remédio. Mas se existem antibióticos que matam vários tipos de bactérias, por exemplo, por que é tão difícil criar um medicamento capaz de matar vários tipos de vírus? Cientistas do Brasil e do mundo estão testando esses remédios “candidatos”, para ver se algum deles tem ação contra o coronavírus. Isso deve ser feito primeiro em laboratório, depois em animais, e finalmente em seres humanos, primeiro em grupos menores e depois em grupos maiores. Em cada etapa, muitos vão sendo eliminados. É difícil acompanhar o volume de tantas pesquisas. Mas é preciso mencionar a existência de pessoas que dedicam seus dias a leitura de artigos mais novos são publicados a respeito de remédios para combater o coronavírus. Uma dessas pessoas é um químico americano, chamado Derek Lowe, especialista no desenvolvimento de novos medicamentos. Ele acompanha tudo o que acontece e, cientistas do mundo inteiro consultam o blog dele para saber quais são as novidades no mundo dos medicamentos e também para dar dicas sobre algum medicamento ou pesquisa. Esse blog é o Science Translational Medicine9.

Traçadas essas linhas, passo aos comentários relativos ao princípio 2 – não- maleficência, cujos pilares são: a) 2.1 – obrigação de não infligir dano intencional; 2.2
– evitar intervenções que determinem desrespeito à dignidade do paciente como pessoa;
2.3 – se uma pessoa já se encontra em um mal estado (dores, depressão, enfermidades, etc.) é sensato que se evite ao máximo mais um dano, seja ele qual for; 2.4 – Assegura que sejam minorados ou evitados danos físicos aos sujeitos da pesquisa ou pacientes;
2.5 – Dano associado ou decorrente das pesquisas e o agravo imediato ou tardio, ao indivíduo ou à coletividade, com nexo causal comprovado, direto ou indireto, decorrente do estudo científico. Assim, em meio ao desespero de ter contraído a forma mais agressiva da infecção do Sars-Cov-2, uma pessoa chega ao hospital, é internada em isolamento e começa a entrar na fase aguda da doença, necessitando de internamento em UTI com intubação para uso do ventilador mecânico. Fica sedada e nessa situação, aguarda por uma melhora e pelo salvamento de sua vida. Pensemos se for o caso de uma9 https://blogs.sciencemag.org/pipeline/pessoa com idade avançada que está com a saúde debilitada, com pouca expectativa de sobrevida.

Ao mesmo tempo, pensemos na situação de uma criança, que nas mesmas condições chega ao hospital e que está necessitando ir para a UTI e respirador, contudo, não existem vagas disponíveis para atendê-la. Indo mais a fundo, nos coloquemos na posição do médico que atende a esta criança ou pais do menor enfermo. Que atitude tomar? Seria possível escolher quem teria direito à chance do tratamento? Seria possível tirar o idoso que estava sendo assistido, para colocar a criança em seu lugar na UTI? E se o paciente idoso expressasse sua vontade de ceder o leito para a criança? Se o idoso recusasse o uso do respirador e da sedação, como deveria agir o médico? E se um familiar ou representante legal chegasse ao hospital e exigisse o atendimento para o idoso ao invés da criança? E se esse idoso ou os pais dessa criança, exigissem o uso de medicamentos que ainda estão em face de estudos ou experimentos? Todos esses dramas humanitários estão acontecendo dia a dia nas emergências e hospitais de todo o mundo. É uma realidade.

Mas seguindo com os nossos comentários vamos adentrar em outra seara, sendo agora analisado o 3º princípio da Bioética, ou o princípio da autonomia, que se traduz em: 3.1 – O ser humano tem o direito de usufruir do seu livre arbítrio; 3.2 – Os serviços de profissionais de saúde devem respeitar a vontade, os valores morais e as crenças, a historicidade, as idiossincrasias de cada pessoa ou, em caso de ausência de sua consciência, de seu representante legal; 3.3 – qualquer imposição tornar-se-á uma postura ditatorial e, por isso, agressão à intimidade do ser humano; 3.4 – o princípio do respeito à pessoa é ponto central nas discussões bioéticas; 3.5 – requer do profissional: respeito à vontade, à crença, aos valores morais do paciente, reconhecendo o domínio do paciente sobre sua vida e o respeito à sua intimidade. Contudo, esse princípio esbarra em circunstâncias especiais, como a exemplo: I – Incapacidade: de crianças, adolescentes ou adultos (por diminuição da capacidade de raciocínio e decisão, e nas patologias neurológicas e psiquiátricas severas); II- situações de emergência: quando se necessita agir e não se pode obter o consentimento; III – Obrigação legal de declaração das doenças de notificação compulsória; IV – Risco grave para a saúde de outras pessoas – obrigação de informar mesmo sem a autorização do paciente.

Ainda sob a ótica do que deve ser feito nas situações graves, tal qual a da pandemia que estamos vivendo, seguimos como a análise dos alicerces do quarto

princípio da justiça cujas bases são: 4.1 – justa distribuição dos bens e serviços implica que o acesso a eles deve ser sempre universal; 4.2 – deve-se avaliar quem necessita mais e preceder a atenção igualitária; 4.3 – equidade da distribuição de bens e benefícios; 4.4 – igualdade de tratamento e justa distribuição das verbas do Estado para a saúde, a pesquisa, etc. 4.5 – é preciso respeitar com imparcialidade o direito de cada um; 4.6 – falece de ética uma decisão que leve a um dos personagens (profissional ou paciente) a se prejudicar.

Tecidas as linhas sobre os princípios, vamos agora falar um pouco sobre as nossas perguntas. Estamos seguindo as balizas trazidas pelos princípios retro mencionados? A resposta, é negativa, infelizmente! Basta lançarmos olhos sobre as questões de aquisição e distribuição dos equipamentos ultra necessários ao combate aos efeitos da infecção do COVID-19, como a exemplo dos respiradores, das máscaras de proteção respiratória, das vestimentas de proteção e demais insumos necessários ao funcionamento de hospitais. De um lado, temos a China e a Índia como os maiores produtores de insumos e equipamentos médicos. Do outro lado, temos todos os países em uma disputa desenfreada pela aquisição desses bens. Essa disputa está bem desequilibrada e os países ricos estão empurrando os países pobres para fora dessa competição. Onde ficam os pilares da justiça e equidade? Quem produz, e detém os bens, exige o pagamento à vista, e não garante a entrega dos itens adquiridos. Muitos contratos firmados estão sendo ignorados.

Temos países como Equador, Itália e Iraque onde não se consegue enterrar os mortos e corpos estão sendo abandonados em vias públicas ou deixados dentro das casas onde moram outras pessoas. O drama dos enterros se agrava a cada dia, pois no mundo todo, na data que traço essas linhas, o número de mortes passa de 118 mil e temos cerca de 2 milhões de casos confirmados. Muitas pessoas estão morrendo sozinhas, dentro das UTIs e onde os médicos ou enfermeiros são as pessoas que estão recebendo as “últimas vontades” do paciente terminal ou mesmo proporcionando contato por via de celulares ou tabletes, entre o paciente e os seus familiares ou entes queridos.

Em meio a essa situação, o que fazer para minorar os danos?

Penso ser necessária a ressignificação das dores intensas que estamos vivenciando. Não para pensar sobre como uma doença que se espalha sem controle pode mudar nossa vida, mas, como nossa vida, talvez estivesse completamente equivocada antes que essa doença chegasse. Para sentirmos de fato, que é uma situação passageira, como foram as doenças do passado.

Um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mapeou o risco de contaminação de trabalhadores brasileiros durante a pandemia e segundo esses estudos, 2,6 milhões de profissionais da área de saúde, apresentam risco de contágio acima de 50% e entre os mais vulneráveis estão os técnicos em saúde bucal. Também estão nas estatísticas de maior risco os vendedores varejistas, e os entregadores10.

O drama dos médicos e enfermeiros, onde as dores são multiplicadas pelo número de pacientes tratados e de horas trabalhadas sem as necessárias condições, certamente vão gerar adoecimento psicológico. Dar um real sentido a tudo que se tem passado para melhorar as condições das pessoas, pode traduzir-se na manutenção da saúde mental, e mesmo nas bases de profundas e necessária mudanças, como a exemplo, de eficientes políticas públicas que implementem saneamento básico e fornecimento de água tratada; na criação de planos diretores capazes de deixar as cidades mais arejadas e com maior e mais ágil mobilidade.

Necessitamos pensar na produção nacional de bens de consumo e não deixar que apenas alguns países detenham a produção, como os que proporcionem a alimentação, a saúde, a educação e a locomoção de pessoas. Vender empresas nacionais que detenham a produção de energia elétrica, combustíveis e principalmente cuidem do tratamento da água pode ser colocar nossos principais recursos de sobrevivência nas mãos de inimigos. Hoje vivemos tempos em que as guerras podem ser biotecnológicas. Imaginemos se ocorrer a contaminação proposital de mananciais de água com algum micro-organismo e que ao invés de atingir as vias aéreas, os efeitos sejam a cegueira ou a paralização dos músculos? A ficção daria lugar a realidade e estaríamos vivendo o drama relatado na obra Ensaio Sobre a Cegueira de José de Saramago. O autor mostra 10 https://ufrj.br/noticia/2020/04/08/coronavirus-ufrj-mapeia-atividades-profissionais-mais-ameacadas as reações do ser humano às necessidades, à incapacidade, à impotência, ao desprezo e ao abandono. Leva-nos também a refletir sobre a moral, costumes, ética e nossa condição humana. O que estamos fazendo para o nosso mundo? Será que a realidade de nossa pandemia está tão diferente assim da obra de ficção?

Pensemos ainda na necessidade de criação de uma legislação internacional que previna e promova a execução de medidas antiterrorismo, seja esse do nível ecológico, biológico ou guerrilhas. A Bioética já nos trás os alicerces onde podemos erigir não o Caos, mas uma civilização de futuro, onde não seja necessária uma pandemia para pensarmos em sermos mais humanos no amplo sentido envolvido nessa palavra.

E concluo essas reflexões com uma passagem de Saramago que muito me tocou: ”Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem.”