O nível de altruísmo e o grau de coesão da sociedade, dos grupos de vizinhos, das organizações são o que ajudará o Brasil a suportar muitos dos efeitos da pandemia, diz acertadamente editorial da Gazeta (modifiquei o título porque, seguindo o liberalismo clássico, não considero o individualismo oposto à solidariedade ou altruísmo):
Uma consequência quase inevitável, à medida que a pandemia do coronavírus se espalha por cidades e países, é o declínio do convívio social. Aqueles que se descobrem infectados precisam necessariamente se recolher em quarentena, e muitos outros decidiram impor o isolamento para si mesmos e suas famílias como um meio de evitar ocasiões de contágio ou, ainda, para não se tornarem transmissores do vírus caso já tenham sido contaminados, mas ainda não apresentem os sintomas – uma dúvida que a escassez de testes que já se começa a observar tanto na rede pública quanto na particular tornará cada vez mais frequente.
Guiadas pela prudência, empresas adotam mecanismos de trabalho remoto quando possível e escolas suspendem aulas; eventos são cancelados ou adiados por seus organizadores. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, fala em dois ou três meses de “muito estresse”. A quarentena, voluntária ou imposta, é um teste severo para nossa sociedade, que tem diante de si a opção entre o individualismo em que vale tudo para proteger a si mesmo ou a força da empatia e da solidariedade.
Não se trata apenas da adoção das medidas básicas de higiene, como lavar as mãos frequentemente ou a chamada “etiqueta da tosse”, nem de seguir as recomendações das autoridades sanitárias a respeito de aglomerações – ações que servem para a própria proteção, mas também são um sinal de respeito para com o próximo. Trata-se de compreender que os demais também têm suas necessidades e estão passando pelo mesmo desafio.
É por isso que os supermercados se tornaram mais o novo campo de batalha entre o individualismo e o senso de comunidade. À medida que os brasileiros percebem que, em algum momento, terão de permanecer em casa, deu-se início a uma corrida ao comércio para comprar mantimentos e artigos de higiene, com o intuito de reduzir a necessidade de novas idas a supermercados no futuro – é bom lembrar que, mesmo nos países que adotaram quarentenas forçadas, como a Itália, os mercados seguem abertos, embora com restrições ao número de clientes dentro dos estabelecimentos. O individualismo manda levar tudo o que puder, mesmo que desnecessariamente; o bom senso recomenda colocar no carrinho apenas o necessário, já que os outros também precisarão abastecer suas despensas.
É animador perceber como já surgiram iniciativas destinadas especialmente aos idosos, que formam um dos principais grupos de risco para complicações do coronavírus. Em condomínios, por exemplo, moradores mais jovens se oferecem para fazer compras em mercados e farmácias para os vizinhos mais velhos. O ministro Mandetta ainda solicitou voluntários para atuar em asilos.
Se o isolamento ajuda a manter os idosos longe de situações de contágio, ele também tem suas consequências negativas, especialmente para aqueles que vivem sozinhos – um preço, aliás, que será cobrado não apenas dos idosos. A revista britânica The Lancet publicou, em fevereiro, uma revisão de diversos estudos sobre os efeitos psicológicos da quarentena sobre várias comunidades em surtos anteriores, como da Sars (causada, aliás, por outro tipo de coronavírus) e do ebola. Os efeitos vão desde o medo e a solidão até um estresse pós-traumático que pode continuar se manifestando até anos depois do fim do isolamento.
Os autores do estudo apontam alguns fatores que atenuam o impacto psicológico; alguns cabem aos governos, como quarentenas curtas e com data para terminar e um esforço para manter a população informada; outros, no entanto, dependem da intensidade dos laços existentes em uma comunidade, como o uso da tecnologia para contato frequente com outras pessoas. A forma como viralizaram rapidamente cenas de italianos em quarentena cantando de seus apartamentos reflete a importância de manter o estado de ânimo durante situações como esta. Também neste caso o altruísmo joga a favor – os pesquisadores concluíram que o isolamento voluntário é menos danoso psicologicamente que a quarentena imposta.
Por fim, a sociedade também será chamada a colaborar na mitigação das consequências econômicas do isolamento. Não há atividade econômica que escapará ilesa do coronavírus, mas algumas categorias de trabalhadores, como prestadores de serviço autônomos, estarão mais vulneráveis à redução da atividade econômica. Também já surgem grupos dedicados a cuidar dos filhos de pessoas que ainda não foram liberadas para trabalhar em casa, e mobilização para ajudar trabalhadores que se verão privados de sua renda habitual nos próximos meses.
Os brasileiros estão descobrindo aos poucos os sacrifícios que serão chamados a fazer durante o surto da Covid-19, e ainda não chegamos a restrições drásticas como as adotadas na Itália ou na Espanha, embora não se possa descartar algo semelhante no caso de a curva de contaminação crescer de forma intensa e súbita. E, mesmo em cenários mais brandos, é irreal depositar todas as esperanças no socorro governamental. Antes de qualquer outra coisa, o nível de altruísmo e o grau de coesão da sociedade, dos grupos de vizinhos, das organizações são o que ajudará o Brasil a suportar muitos dos efeitos da pandemia.