Cineasta dá rara entrevista, em meio ao lançamento de filme sobre o Caso Dreyfus, que levantou questões sobre justiça na França no fim do século XIX
Os ecos desse escândalo chegam até nós, como demonstrado pelo sucesso do filme na França, onde estreou em novembro. Vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza, o longa se junta a outras obras da sólida filmografia de Polanski, de 86 anos, autor de títulos como “O pianista”, “Chinatown” e “O bebê de Rosemary”.
Nascido em Paris e criado na Polônia natal de seus pais, o diretor tem uma turbulenta trajetória pessoal. Sobrevivente do Holocausto, perdeu grande parte de sua família massacrada em Auschwitz. Em 1969, sua esposa Sharon Tate foi morta de maneira atroz quando estava grávida (Caso que o colocou como personagem de “Era uma vez… em Hollywood”, de Quentin Tarantino). Em 1977, foi acusado de estuprar uma garota de 13 anos. Condenado, desde então não pode retornar aos Estados Unidos, de onde fugiu.
A estreia francesa de “O oficial e o espião” coincidiu com uma nova acusação de violência e abuso sexual que teria ocorrido em 1975, envolvendo uma jovem de 18 anos. Ele mal concedeu entrevistas desde então. Esta conversa ocorreu por telefone, e os agentes de Polanski impuseram duas condições: que ela durasse 20 minutos e tivesse apenas perguntas específicas sobre o filme. O diretor, no entanto, acabou concordando em ser questionado sobre como as novas acusações afetam a sua reputação e a de seu filme.
O caso Dreyfus ainda fala sobre o presente?
Muito. No fundo, ele fala sobre a verdade e de como estabelecer a verdade. Se deixarmos de lado o problema do antissemitismo, é isso que resta.
Você mora na França, onde há um grande problema de antissemitismo. Isso lhe traz recordações ruins da sua infância?
No mesmo momento em que filmamos a sequência do auto da fé (em que a figura de Dreyfus é repudiada publicamente) e as cenas em que as pessoas escrevem slogans antissemitas nas vitrines das lojas, fizeram o mesmo em algumas ruas perto do local em que trabalhávamos. Escreveram “judeu” em um restaurante. Também colocaram suásticas nos retratos de Simone Veil (sobrevivente do Holocausto e primeira mulher a presidir o Parlamento Europeu, nos anos 1970).
Um dos personagens centrais do caso, Georges Picquart, é um antissemita que defende Dreyfus não porque considera indigno ver um inocente na cadeia, mas para proteger o Exército. Acredita que é um erro a História tê-lo convertido em herói?
Ele é um herói, uma pessoa justa, porque seu objetivo é defender a verdade. Gosto muito de uma de suas falas: “Preferia que (Dreyfus) fosse culpado porque a vida seria muito mais fácil”.
Acredita que a verdade está em perigo atualmente?
Sem dúvida. Não há mais verdade, agora existe o que chamamos de pós-verdade. Apenas emoções importam. A verdade histórica ou científica não tem importância. Dizemos que algo é verdade porque nos convém. Isso é muito triste. Eu não acho que a verdade histórica ou científica tenha uma oportunidade em nossas sociedades.
Você também diz isso pelas acusações contra você? Você já se perguntou por que quase ninguém acredita em você?
Sou vítima de mentiras há muito tempo.
Você está preocupado que o filme seja uma metáfora para o seu próprio caso?
É realmente aberrante e estúpido dizer que acredito ser Dreyfus. É outra mentira, outra maneira de me insultar.
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Você está preocupado que isso afete a percepção presente e futura sobre o filme?
Depende do espectador. Não pode ser generalizado. Você não pode colocar todo mundo no mesmo saco.
Dreyfus, que é a vítima, também não é um personagem simpático.
Essa foi outra das razões fundamentais para contar essa história de um ponto de vista externo, e não pelos próprios olhos do personagem.
Há um momento em que Picquart vai visitar seu antecessor nos serviços secretos e faz um discurso dizendo que não reconhece mais a França porque ela está cheia de estrangeiros. Não dá a sensação de que estamos ouvindo alguém do Front National (partido francês de extrema direita)?
Não, são apenas os documentos reproduzidos. Tudo é autêntico neste filme. A maioria dos diálogos é, pelo menos, baseada em diálogos reais. Como o caso passou por diferentes processos, tudo foi estenografado e o que foi dito foi encontrado. Reconstruímos diálogos verdadeiros.
Atualmente, há alguém na Europa com a força moral que Émile Zola demonstrou nesta história? (O escritor tentou alertar as autoridades da época sobre as falhas do processo contra Dreyfus)
Eu me pergunto se alguém assim pertence mais ao passado do que ao mundo hoje. Sinceramente, não posso responder a essa pergunta, porque de tempos em tempos somos surpreendidos pelo heroísmo de certas pessoas.
Acredita que seu filme será visto nos EUA?
Não sei. Terá que perguntar aos outros. Fazemos filmes para que multidões vejam o nosso trabalho. Não sou diferente dos outros.