Ano passado, quando embarcou na turnê “A mulher do Pau-Brasil”, em que falava sobre a identidade artística brasileira, Adriana Calcanhotto sentiu na plateia a efervescência pré-eleitoral e a polarização que tomaram conta do país.
— Houve momentos em que eu dava um passo para trás e deixava as pessoas se manifestarem — conta.
Agora, ela acredita, o mar está mais calmo para receber “Margem”, show que estreia nesta terça-feira, no Teatro Riachuelo, no Rio. A base é o disco homônimo lançado em junho, o último título da trilogia marinha iniciada por Calcanhotto em 1998 com “Marítimo”, e continuada com “Maré”, de 2008. O repertório tem ainda canções dos outros dois álbuns e sucessos da carreira, que ela apresenta ao lado de Rafael Rocha (bateria), Bruno Di Lullo (baixo) e Bem Gil (guitarra).
No single “Ôguntê” você aparece coberta de plástico, cercada de lixo. “Margem” também fala bastante da poluição dos oceanos , né?
O meu figurino é todo reciclado de outros trabalhos. A única coisa comprada é um tênis Parley, feito de lixo retirado do mar. É essa ideia de não produzir tanto lixo. Anos atrás, Sonia Braga botou um macacão abóbora, foi tirar lixo da rua e todo mundo disse que ela era doida. Todos é que estavam doidos, certa era ela. E foi ridicularizada. Quando a Lucélia Santos pegou um ônibus, foi ridicularizada. Isso não cabe mais, não dá mais tempo, temos que agir.
Acha que as pessoas veem com distanciamento as questões do meio ambiente?
Amazônia está queimando há tempos. Quando lancei o “Marítimo”, as questões eram os barcos de pesca japoneses, camuflados de barco de pesquisa, caçando baleia ilegalmente. Isso foi em 1998. Hoje, as pessoas sacaram que estão comendo o plástico que elas jogam fora. O microplástico tá na barriga dos peixes, os bebês estão mamando microplástico. Não tenho outra palavra que não seja cansaço. As pessoas ficam numa inércia como se fosse em outro planeta. Mas já tive menos esperança. A partir da Greta ( Thunberg, jovem sueca que deu início a um movimento internacional de greves de estudantes contra as mudanças climáticas )… Ela não pega um avião, pega um barco sem banheiro, isso é novidade.
Você está fazendo residência na Universidade de Coimbra. Como é olhar o Brasil de lá?
Li uma matéria da Cora ( Rónai ) em que ela articulou algo que eu sentia. Dizia que quando a gente está no Brasil, se adapta. Contorna a loucura, cria a bolsa do ladrão. Quando chego em Portugal, levo uns dias com uma sensação… ( se apalpa ). É porque eu não tô com medo. Poder olhar especialmente da Universidade de Coimbra para o Brasil, que é uma tradição, é algo que jamais imaginaria. Ando pelos corredores onde as pessoas pensavam a independência do Brasil. Poetas e historiadores circulam por ali. É bonito.
E a invasão de brasileiros?
Olho a quantidade de cabeças pensantes do Brasil que estão lá. Talvez faça um pouco de falta. Alguns brasileiros vão para Portugal sem entender o que o país é. Ficam apavorados que os apartamentos não têm dependência de empregada. Não têm consciência, de como Portugal é politicamente. No parlamento europeu, foi o país que melhor se colocou em relação a esse movimento de direita. Não que lá não tenha, mas não se impõe. No Brasil, me surpreendo o comportamento contra a educação e a cultura. Quando falamos de educação parece que é só alfabetização e construção de prédios escolares. Mas você vê que o túnel quase matou pessoas porque os ricos jogam lixo pela janela ( em maio, parte do Túnel Acústico Rafael Mascarenhas desabou por causa do despejo de lixo de uma casa de luxo na encosta ).
Você é autora de uma ode ao Rio, a música “Cariocas”. Como vê a cidade hoje?
Aquele Rio que eu via não existe mais. O carioca não é mais o mesmo. A alegria… Quando fiz a canção, saiu a lei de que era obrigatório o uso do cinto de segurança. No dia seguinte, os camelôs vendiam camisetas brancas com uma faixa preta. Hoje não é mais assim. Eu acho uma perda. Não acho que as cidades têm que permanecer. As coisas andam para a frente. Mas também não é possível, diante do que tem acontecido na cidade, reagir brincando. A cidade está com medo, uma criança levar um tiro dentro de casa não e aceitável.
Em 2015, você perdeu sua companheira, a atriz e cineasta Susana de Moraes, com quem foi casada por 25 anos. Como descreveria a vida sem ela?
O luto não é um processo constante, que só melhora. Ele vai e vem, depende das situações. A Susana era uma pessoa forte, faz muita falta no mundo. Waly Salomão, Cazuza, Cássia Eller… Há pessoas que relativizavam qualquer ambiente, qualquer caretice. Eles botavam tudo em xeque. Susana faz muita falta na minha vida, meu luto não acabou. Não sei se acaba, eu convivo.
Algumas lésbicas defendem que amar mulheres é um ato político e revolucionário, porque você desloca a centralidade do patriarcado. Concorda?
Não, porque acho que nos momentos em que o patriarcado não era tão assim, na Grécia, por exemplo, o amor lésbico sempre existiu. Tive namorados também durante a minha vida, até que me casei. Pode ser, em outros casos, uma escolha política. Eu não consigo ver assim.