Por José Nêumanne*
Com a autoridade de maior especialista no Brasil em leis de combate à corrupção, o professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Modesto Carvalhosa cunhou uma expressão para definir os grupos que se reúnem em torno da proposta de soltar Lula da sala que ocupa na sede do Departamento de Polícia Federal (PF) em Curitiba: Central Única da Corrupção. Não lembra Centra Única dos Trabalhadores, hein?
Em post, que publicou neste fim de semana, o mestre relacionou os últimos movimentos da trama insistente, mas agora também se tornando evidente. Escreveu: “Nos últimos meses temos visto manobras sem igual da Central Única da Corrupção para se perpetuar no poder. Talvez seja difícil levantar todos os aspectos da trama, tão infiltrados que os cleptocratas ainda estão nas demais esferas do poder. Alguns pontos são importantes e precisam ser lembrados”. E listou os sete pecados capitais cometidos:
- A dificuldade de aprovação da reforma da Previdência, colocando como moeda de troca as verbas para que cada parlamentar irrigue seus currais eleitorais;
- As manobras para colocar os velhos e conhecidos corruptos sendo julgados pela Justiça Eleitoral;
- O pedido para dobrar o Fundo da Vergonha – o execrável Fundo Eleitoral – para R$ 3,8 bilhões, com o objetivo de perpetuação no poder municipal dos corruptos caciques políticos e seus protegidos, que se aproveitam das benesses do dinheiro público em detrimento do povo sofrido e carente;
- A decisão monocrática de Toffoli, em pleno recesso do STF, suspendendo a vigência de leis federais e paralisando todas as investigações e os inquéritos da Polícia Federal e do Ministério Público com base em lavagem de dinheiro;
- O crime encomendado e armado pela Central Única da Corrupção, que hackeouautoridades e manipulou informações e dados para confundir a opinião pública e enganar o povo brasileiro;
- A invenção de uma narrativa que pretendia colocar o atual ministro da Justiça como idealizador de um esquema fabuloso e fantástico para ‘acabar com o Partido dos Trabalhadores (PT)’ com a ajuda do Ministério Público Federal e da Polícia Federal; e
- A recusa em seguir os protocolos e normas do Senado para verificar a procedência dos pedidos de impeachment dos ministros ‘garantistas’ do STF, que demonstraram incompatibilidade para os cargos que ocupam.
Da lista cuidemos do item que ocupa os noticiários no momento. O gravíssimo crime da invasão dos celulares de 976 autoridades dos três Poderes da República é o mais atual. E pode ter começado há pouco menos de um ano, quando a juíza das Execuções Penais de Curitiba, responsável pelo cumprimento de pena de Luiz Inácio da Silva, não permitiu uma entrevista do presidiário a Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, e Florestan Fernandes, do jornal espanhol El País. Essa decisão foi, contudo, revertida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Ricardo Lewandowski. Em 28 de setembro de 2018, o ministro Luiz Fux deferiu liminar para determinar que o mais famoso presidiário brasileiro se abstivesse de dar entrevista ou declaração a qualquer meio de comunicação até que o Supremo apreciasse a matéria de forma definitiva.
Em 18 de abril, o presidente do STF, Dias Toffoli, atendeu ao pedido dos deputados Wadih Damous (RJ) e Paulo Pimenta (RS), ambos do PT e com atuação destacada em episódio (omitido por Carvalhosa) na sua relação de atos recentes para impor a libertação do ex-presidente: o pedido ao Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre, atendido em decisão monocrática pelo desembargador Rogério Favreto, decisão aloprada que não chegou a ser cumprida. Lewandowski mantém relações pessoais com Lula e Toffoli, reprovado em dois concursos para juiz de primeira instância, é empregado de petistas desde os tempos de estudante, quando, garçom da Oficina da Pizza na Vila Madalena, frequentava assiduamente a sede do diretório do partido em Pinheiros.
Após Tolffoli derrubar a liminar de Fux e restituir a decisão de Lewandowski, a banda amiga de Lula no STF teve de decepar mais um nó górdio institucional. Ao organizar o encontro dos repórteres autorizados com Lula, o superintendente da PF no Paraná, Luciano Flores Lima, autorizou a presença na entrevista de jornalistas de outros veículos, citando a necessidade de respeitar “direitos constitucionais relativos ao livre exercício da profissão e liberdade de imprensa”. E, em ofício, também argumentou que precisava dar “publicidade de atos administrativos que não estiverem sob necessidade de sigilo”.
Mas o insistente Ricardo Lewandowski decidiu, em 25 de abril, proibir a presença de jornalistas que não fossem da Folha e do El País no encontro previsto para sexta 26. Despachou ele: “Esclareço que a decisão da Corte restringe-se exclusivamente aos profissionais da imprensa supra mencionados, vedada a participação de quaisquer outras pessoas, salvo as equipes técnicas destes, sempre mediante a anuência do custodiado”.
Publicada no dia seguinte, a entrevista continha uma declaração profética de Lula: “Tenho obsessão de desmascarar o Moro, Dallagnol e sua turma”. Duas semanas depois, em mais uma concessão generosa da banda amiga da Justiça, Lula recebeu o advogado americano Glenn Greenwald, do site The Intercept Brasil, para mais uma entrevista exclusiva.
Em 11 de maio, Lula disse, na dita-cuja entrevista, que foi proibido de disputar eleições por ação do Departamento de Estado dos EUA e da elite brasileira. Greenwald perguntou-lhe se tinha provas. “Tenho convicção”, disse o petista, usando a palavra mais criticada por sua defesa para desqualificar a acusação feita em PowerPoint pelos procuradores da força-tarefa da Lava Jato, como evidência de que Moro o condenou, embora os procuradores chefiados por Dallagnol não tenham produzido provas suficientes sobre seu delito.
O americano argumentou ainda que a elite brasileira ganhou muito dinheiro nos governos do PT. “Não é uma questão econômica, mas cultural: o Brasil foi o último país a libertar os escravos”, respondeu Lula, repisando o argumento de que “se criou um ódio para evitar a ascensão dos pobres” e isso teria feito a elite voltar-se contra ele, apesar de todos os benefícios que lhe foram prestados em seu governo. A História registra que o ódio reinante hoje no nada civilizado debate político brasileiro, de fato, foi uma genial criação de marketing do PT, ao dividir o Brasil em “nós” e “eles” para vencer Geraldo Alckmin, do PSDB, em 2006, após a eclosão do mensalão, que expôs a compra de bancadas para apoiar o desgoverno dele em troca de propinas de empresas favorecidas por obras federais.
A desenvoltura com que o ex-presidente condenado atua na sala dita de “Estado Maior” em que o então juiz federal Sergio Moro o instalou para começar a cumprir a pena resultou, como acima relatado, de decisões favoráveis de seus amigos ministros no STF. Tudo isso, evidentemente, poderia ter sido evitado. Como descreveu Ricardo Galhardo em entrevista ao podcast Estadão Notícias, no portal desde 5 de abril, dois dias antes de se completar o primeiro ano da prisão de Lula, sua rotina é mais atarefada do que a dos tempos em que era praticamente um ocioso sustentado pela aposentadoria de ex-presidente e verbas partidárias de origem pública. Os pronunciamentos da sala do trono são a manifestação mais cínica de suas atividades de político preso. Ele recebe clipping diário com noticiário dos meios de comunicação providenciado por um assessor.
Depois da divulgação no Intercept de supostas mensagens para desqualificar os alvos de sua confessada obsessão – Moro e Dallagnol –, alguém podia mandar Lula para uma cadeia de verdade, seja qual for. Só assim poderá começar a cumprir pena sem tantas mordomias. Acreditar que o spoiler que ele deu em 27 de abril e a entrevista ao dono do site, que continua a divulgar a conta-gotas seu veneno para assassinar reputações, são “coincidências” equivale a tornar autos de fé todas as absurdas “convicções” do padim. Entre elas, a parceria do Departamento de Estado dos EUA numa conspiração de banqueiros e empreiteiros, tratados a pão de ló nos desgovernos petistas, mas enojados por encontrarem pobres no avião.
*Jornalista, poeta e escritor