Uma crônica sensacional de Rubem Braga, que a gente lê e nunca mais esquece

Carlos Newton

Aqui na Tribuna da Internet são os comentaristas que fazem a diferença. Um deles é a intelectual pernambucana Carmen Lins, que hoje mora em Belo Horizonte e demonstra ter uma cultura imensa, verdadeiramente incomum. Esta semana ela nos mandou esta crônica, escrita por Rubem Braga para a revista Manchete e publicada no livro “A Traição das Elegantes”, lançado em 1967 pela Sabiá, editora criada pelo próprio Braga com o amigo Fernando Sabino, outro grande mestre das crônicas.

Eu e Paulo Peres tivemos a honra de trabalhar com Rubem Braga na “Revista Nacional”, criada em 1978 por Mauritônio Meira e que nos anos 80 se tornou a publicação semanal  com maior número de exemplares na América Latina.

Fui o primeiro diretor da Revista Nacional. Antes do lançamento, Mauritônio sonhava em convidar Braga e eu argumentei que não tínhamos como pagar o salário dele. “Deixa que eu resolvo”, disse ele.

NENHUM CENTAVO – Poucos dias depois, Braga mandou a primeira crônica. Surpreso, perguntei: “Quanto vamos pagar ao Braga?”. E Mauritônio respondeu. “Nenhum centavo. Quem vai bancar o salário é a Editora Record, que precisa de crônicas inéditas dele para lançar novos livros. Não conte para ninguém. O Braga pensa que somos nós que estamos pagando a ele…”.

Somente agora, 29 anos depois da morte do Braga, estou contando essa história. E a crônica que a Carmen Lins nos enviou deve ser, pelo menos. a segunda melhor já escrita no mundo, como diria o roteirista e cineasta Richard Brooks. Pode ser que alguém tenha escrito uma crônica insuperável, que a gente ainda não leu, mas pelo menos a segunda melhor do mundo é esta criação de Rubem Braga, que só queria escrever uma história engraçada para uma moça doente sorrir.

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MEU IDEAL SERIA ESCREVER…
Rubem Braga

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse – “ai meu Deus, que história mais engraçada!” E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa (que não sai de casa), enlutada (profundamente triste), doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria – “mas essa história é mesmo muito engraçada!”

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada como o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera, a minha história chegasse – e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário (autoridade policial) do distrito (divisão territorial em que se exerce autoridade administrativa, judicial, fiscal ou policial), depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse – “por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!” E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa (habitante da antiga Pérsia, atual Irã), na Nigéria (país da África), a um australiano, em Dublin (capital da Irlanda), a um japonês, em Chicago – mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou (introduziu-se lentamente em) por acaso até nosso conhecimento; é divina.”

E quando todos me perguntassem – “mas de onde é que você tirou essa história?” – eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história…”

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

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