Por Maria Cristina Fernandes (foto)
Antes de se transformar no principal ideólogo da conspiração militar no governo Jair Bolsonaro, Olavo de Carvalho fez carreira como conferencista em colóquios das Forças Armadas e recebeu estreladas condecorações.
Ao eleger o general Hamilton Mourão, como seu principal alvo, Olavo refaz sua trajetória e volta ao ponto de partida de sua aproximação com os militares. Data do governo Fernando Henrique Cardoso, quando se tomaram as primeiras medidas de reparação da ditadura, movimento que também projetou tanto o presidente da República em sua pregação parlamentar quanto o atual vice, notório polemista em seu generalato nas Forças Armadas.
Olavo de Carvalho forneceu o substrato do discurso injustiçados-nunca-mais que lustrou a auto-estima militar num momento em que tiveram início a exumação de ossadas e a indenização de familiares de vítimas notórias do regime, como a filha de Carlos Lamarca.
Uma de suas primeiras conferências se deu no Clube Militar, no Rio, por ocasião dos 35 anos do golpe e a convite do general Helio Ibiapina. Presidente do clube por quatro mandatos consecutivos, Ibiapina chefiava a repressão em Pernambuco quando o líder comunista Gregório Bezerra, amarrado à corda de uma guarnição militar, foi exibido pelas ruas do Recife como um troféu da quartelada.
Neste discurso, o Olavo de 20 anos atrás apareceu irreconhecível. A fala, de improviso, foi transcrita e recebeu o nome de “Reparando uma injustiça pessoal”. Nela, o escritor declamou um longo mea-culpa da oposição que fizera ao golpe. Naquele dia, lustrou os brios de militares humilhados pelo discurso da reparação. Disse que eles deveriam se orgulhar de terem desmontado as guerrilhas comunistas e fascistas que dominavam o país – “Nunca se deteve uma revolução com tão poucas mortes”.
Ele já dizia o que diz agora, sobre o fracasso em mudar as mentalidades que “devolveu o país para os comunistas”. Mas isso não deveria ofuscar suas estrelas. “Não se envergonhem de sua obra. Levantem suas cabeças, tenham orgulho e não permitam que nenhum hipócrita comunista venha se fazer de seu fiscal”.
Naquele dia, o guru que hoje atribui aos militares um “exíguo horizonte de consciência e invencível submissão aos critérios politiqueiros de julgamento”, se mostrou benevolente e até paternal: “Nunca, nunca cedam a sua dignidade ao falso moralismo da hora, nunca sacrifiquem aquilo que é elevado e digno em vocês àquilo que é baixo e vil num outro qualquer.”
Naquele mesmo ano, Olavo receberia uma carta do então ministro do Exército, general Gleuber Vieira, pelo conteúdo “inteligente, prudente, equilibrado e de bom senso” de seus escritos, frequentemente abrigados no site “Terrorismo Nunca Mais (Ternuma). O mesmo ministro lhe concederia a Medalha do Pacificador, a principal condecoração do Exército.
A interlocução se intensificaria. Em 2001, Olavo de Carvalho fez uma conferência no Clube Naval do Rio e outra num encontro promovido pelo Comando Militar da Amazônia com o sugestivo nome de “I Simpósio sobre Estratégia da Resistência e Mobilização da Vontade Nacional”. Naquele mesmo ano receberia a Medalha do Mérito Santos Dumont, honraria da Aeronáutica. No ano seguinte, seria conferencista na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e continuaria a colaborar com o Instituto Histórico e de Geografia Militar. Nesse período, financiado pela Odebrecht, ainda revisou os quatro compêndios de “O Exército na História do Brasil”, publicado pela Biblioteca do Exército.
Em 2002, ele ainda participaria do projeto “História Oral do Exército Brasileiro na Revolução de 1964” antes da eleição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o levaria a deixar o país bem como a intensa colaboração com os militares. Estariam formadas as bases daquilo que Piero Leirner, estudioso da Ufscar, chama de “arsenal ideológico que repolitizou as Forças Armadas” e seria tão importante para engajar a farda na candidatura de Jair Bolsonaro depois da Comissão da Verdade no governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Olavo de Carvalho trafegava por diferentes alas das Forças Armadas, mas sempre teve mais identidade com os setores mais engajados no revisionismo histórico, onde militaram o coronel Carlos Alberto Ustra, o general Heleno Ribeiro, o general Carlos Chagas, candidato derrotado ao governo do Distrito Federal e fundador do site Ternuma, além do titular e do vice da chapa presidencial.
O embate com seus antigos aliados da farda não se mostrava evidente ao longo da campanha. Começou a aparecer quando entraram em disputa o Itamaraty, a Educação e a Comunicação, tríade da guerrilha ideológica apregoada pelo conferencista militar. O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro da Secretaria de Governo, nunca militou nas hostes do revisionismo mas entrou na mira de Olavo pelo controle exercido sobre os cargos.
Os militares perderam para o guru o controle da comunicação, hoje nas mãos do publicitário Fabio Wajngarten, e para dois olavistas consecutivos, Ricardo Vélez Rodríguez e Abraham Weintraub, a Educação. Seguraram as pautas mais alopradas, como a mudança da embaixada brasileira em Israel, mas ainda não foram capazes de tirar do cargo o chanceler Ernesto Araújo.
A pauta de Olavo de Carvalho, dar carne ao bolsonarismo recalcitrante de extrema direita, não interessa mais aos militares do poder. Seus objetivos neste governo, como a reestruturação da carreira, passam pelo Congresso, onde não serão capazes de tramitar seus interesses com um discurso radicalizado. O mesmo se aplica para Mourão, que só se justifica como uma alternativa de poder deixando num passado longíquo sua militância na extrema direita militar para abraçar a moderação. Não foi escolhido como alvo do atirador de Virgínia por acaso.
Em algum momento, Olavo lhes foi útil. Não é mais. Hoje tem mais serventia para os Bolsonaro pai e filhos, cujo futuro político depende do enraizamento da guerra cultural de direita. Por mais enfadonha que seja, a batalha ainda vai longe.
Valor Econômico