RICARDO DE QUEROL
“Funes não só se lembrava de cada folha de cada árvore de cada montanha, mas de cada uma das vezes que a percebera ou imaginara”. Um dia, o jovem Ireneo Funes caiu do cavalo, perdeu a consciência e, quando se recuperou, “o presente era quase intolerável de tão rico e nítido, e também as recordações mais antigas e triviais”.
Os humanos comuns tendem a esquecer mais do que a reter cada detalhe da folha de uma árvore. Isso nos permite manter o equilíbrio, simplificar a complexidade e não sofrer tanto como Funes, que não conseguia dormir. Também esquecemos, consciente ou inconscientemente, coisas de nós mesmos que não queremos reter, e assim vamos construindo um eu em parte real e em parte fictício.
De vez em quando, o Facebook te assalta com memórias. Há dois anos você escreveu isto, quer compartilhar novamente? Talvez algo te arranque um sorriso, talvez te envergonhe. Talvez apareça a imagem daquela pessoa amada e perdida ou do companheiro que te deixou. Talvez uma piada de mau gosto, rótulos em fotos de uma noite louca. Qualquer coisa que você não queria que perdurasse.
Os seus rastros digitais são extenuantes. Em algum canto do big data estão todas as mensagens que você trocou, os caminhos que seguiu todos os dias, as suas buscas, as fotos de que você gostou, sua lista de amigos, seus cookies(sim, aceito). Muito poucos se preocupam em apagar o rastro de seu passado, o que exigiria tanto tempo quanto dedicaram ao longo do dia mexendo no celular. Esperamos que nesse oceano de dados ninguém vai remexer, só mesmo os algoritmos que tiram proveito disso. A menos que você se torne uma figura pública, é claro, e os trolls se empenhem em fuçar nos seus antigos tuítes para descobrir indiscrições. Mas não é preciso ser famoso. Em qualquer site ou aplicativo, não só os seus dados te acompanham, mas os seus metadados, um perfil que você não escreveu.
Ireneo Funes “achava que na hora da morte ainda não teria terminado de classificar todas as memórias da infância”. Para nós, cidadãos do século 21, chegará a hora sem termos podido apagar tudo o que desejaríamos que não continuasse ali.