Dançarinos de Chhau, dança marcial indiana (Foto: Pallab Seth)
por Anna Anjos
Ornamentadas em diversos materiais (madeiras, metais, conchas, fibras, marfim, argila, chifre, pedra, penas, couro, peles, papel, tecido e palha de milho), as máscaras representaram, ao longo dos séculos, os seres sobrenaturais, as divindades e os antepassados. Uma das mais antigas práticas humanas, o uso das primeiras máscaras pelo homem primitivo teria ocorrido em 9.000 a.C.. Em fase de restauração no Museu Bible et Terre Sainte, em Paris, e no Museu de Israel, em Jerusalém, as máscaras antropomórficas (detentoras de características humanas) teriam sido utilizadas em diversas celebrações, cultos e rituais de povos primitivos. Elas buscariam a associação do usuário com algum tipo de autoridade incontestável, tal como “deuses” ou alguma outra forma de creditar a reivindicação da pessoa em um determinado papel social.
Máscara do Antigo Egito, cerca de 664-535 a.C.
Na China, as máscaras eram usadas para afastar os maus espíritos. No Egito Antigo e na Grécia, elas eram inseridas sobre o rosto dos falecidos na crença da passagem para a vida eterna. Essas máscaras mortuárias estilizadas tinham a função de orientar e evitar a “fuga” espiritual do corpo, seu lugar de descanso eterno. Elas eram feitas de tecido coberto com gesso ou estuque (uma argamassa composta de gesso, água e cal, de secagem rápida) e pintadas logo em seguida. Para personagens mais importantes, foram utilizados metais preciosos como a prata e o ouro.
Máscara mortuária do faraó Tutancâmon, que data de 1350 a.C.
Foi também durante a Grécia antiga que surgiram as máscaras teatrais. O exagero de expressão era característica principal dessas máscaras, que maximizava a natureza de cada personagem. Usadas em rituais de drama (também adotadas nas festas dionisíacas), elas foram projetadas em um tamanho que permitisse ampliar a presença do ator e também sua voz, através de um dispositivo embutido em uma espécie de “megafone”.
Dançarinos de Chhau, dança marcial indiana (Foto: Pallab Seth)
Entre o final da Idade Média e ao longo do século 18, a confecção das máscaras mortuárias para a realeza da Europa foi reavivada, tornando-se tradição entre as pessoas famosas da sociedade europeia entre o século 17 e 20. Com cera ou gesso líquido de paris (feita de minério de cálcio e água, que tem a propriedade de não encolher e endurecer rapidamente), o negativo do rosto humano era produzido e agia como um molde para a imagem positiva. Segundo o historiador José Mattoso, em As Máscaras: o rosto da vida e da morte (Universidade do Porto, 1999), “(…) este ritual tinha por si mesmo uma forte eficácia como elo de coesão para o grupo de descendentes. (…) A manutenção deste elo garantia a prosperidade e a fecundidade do grupo, isto é, assegurava a sua perpetuação.”
Máscara japonesa do teatro “No”
O teatro japonês No (misto de canto, pantomima, música e poesia) possui cerca de 125 variedades de máscaras, que são classificadas em cinco tipos gerais: pessoas de idade (masculino e feminino), deuses, deusas, demônios e duendes. Confeccionadas em madeira, revestidas de gesso, envernizadas e douradas, as máscaras são pintadas respeitando significados de cada cor: simbolizando a violência e a brutalidade, o vilão é representado pelo preto; o branco caracteriza um governante corrupto; o vermelho significa um homem justo.
Máscara Mahakala (um dos nomes atribuídos a Shiva, o deus transformador hindu), Nepal
Máscara cerimonial da tribo indígena canadense Heiltsuk, século 19
Máscara feminina da tribo Haida, do Alasca – Vancouver Art Gallery
José Mattoso analisa o papel dual da máscara: “Se repararmos para que serve, sobretudo nas sociedades ditas ‘primitivas’ e nas sociedades tradicionais, tem de se reconhecer, creio eu, que a máscara, longe de ocultar, revela; que ela retira a expressão pessoal do rosto, mas manifesta aquilo que na vida cotidiana não se pode ver; que ela serve, enfim, para descobrir um certo sentido do rosto que está para além das aparências: aquele sentido em que a face viva e individual faz esquecer e só aparece com a morte.” Um exemplo disso são as máscaras criadas por povos do Himalaia, que funcionavam, sobretudo, como mediadores de forças sobrenaturais.
Anthony Shelton, diretor do Museu de Antropologia da Universidade da Colúmbia Britânica, afirma que a mais antiga evidência de máscaras nas Américas é um fóssil de vértebra de lhama encontrado no México, entre 12 a 10 mil anos a.C., que teria sido esculpida para representar a cabeça de um coiote. Ele acredita que as máscaras de animais podem ter sido utilizadas em cerimônias religiosas, iniciações e rituais de sepultamento, representando a intervenção de entidades ancestrais. Além disso, elas poderiam ser utilizadas como uma forma de divisão política do império Inca.
Máscaras de dança da tribo Yupk, século 19
Máscara de dedo da tribo Yupk, cujo tamanho não ultrapassa 8 centímentros, século 19
Máscara de miçanga em madeira do povo Huichol, Mexico, 2005
A iconografia andina inclui certos personagens e temas onipresentes, desde a era Chavín (pré-inca) ao tempo dos Incas (de 1500 a.C. a 1532 d.C.). Muitas das primeiras máscaras representavam alguns animais, incluindo o jaguar (onça), o puma e a raposa (alguns dos quais posteriormente assumiriam características cada vez mais antropomórficas entre as civilizações Chimú e Moche). O cronista Felipe Guaman Poma de Ayala, que viveu no Peru, desenhou alguns fazendeiros usando cabeças de raposas e peles sobre suas próprias cabeças. Eles incorporariam personagens animalizados durante cerimônias dedicadas a certas entidades espirituais.
Máscara de cera de abelha em madeira do povo Huichol, Mexico, 2005
Durante o Bal Masqué (tradicional baile de máscaras europeu), o uso de máscaras era obrigatório – e até satisfatório, devido a constantes conflitos políticos. Os cortesões mascarados faziam brincadeiras, confiantes no anonimato, extravasando todos os seus impulsos reprimidos e libertando-os das normas sociais.
Personagens do teatro de rua Commedia dell’arte
Réplica de máscara veneziana
Incerta, a origem da palavra “máscara” é interessante: alguns acreditam que poderia ser proveniente do latim (mascus ou masca; “fantasma”) derivado do árabe (maskharah, palhaço; e do verbo sakhira, “ao ridículo”). Mas ela também poderia ser proveniente do hebreu (masecha), cuja tradução seria algo como “ele zombou, ridicularizou”. Curiosamente, em Veneza, as máscaras tornaram-se peças decorativas, transformando-se em principal atividade econômica para a região. Usadas pelos “bobos da corte”, artistas do riso, as máscaras transformaram-se em Arlequim, Pulcinella, Pierrot e Colombina, personagens da Commedia dell’arte. Realizado nas ruas e praças públicas, esse teatro popular improvisado apresentava cenas que ironizavam a vida e os costumes da nobreza da época. Mais tarde, esses mesmos personagens inspirariam o Carnaval veneziano, que duraria até o final do século 18, com a queda da República de Veneza, período em que o uso e a tradição das máscaras começou gradualmente a diminuir, até desaparecer completamente.
Máscara asteca em turquesa, cerca de 1400 a 1521 a.C.
Enquanto símbolo visual, a máscara retoma as fontes dos mitos dos antepassados, dos deuses e dos animais totemizados. E continua presente em eventos sociais como bailes, desfile de carnaval, festas à fantasia e em diferentes profissões: médicos e dentistas usam máscaras cirúrgicas, protegendo a si e os pacientes. O soldador protege-se das fagulhas com uma máscara metálica; no esporte, o esgrimista, o jogador de futebol americano e o lutador de boxe não podem entrar em combate sem sua máscara. Elas servem não apenas para proteção, como também desempenham a construção de uma identidade, de um imaginário acerca de determinada função na sociedade (isso remete, ainda que de forma longínqua, às antigas máscaras gregas que serviam para dar rosto aos personagens).
Segundo Mattoso, “é esse aspecto misterioso e transcendente que a máscara tenta exprimir, através da distorção ou do grotesco, do exagero ou da estilização, da transfiguração ou da simplificação, da imitação ou da inversão. Por meio do recursos imprevisíveis, e todavia repetitivos, da arte, a máscara procura abrir o caminho à compreensão do que há de mais universal no homem, e do que inexoravelmente o liga ao mistério das trocas entre a morte e a vida. Só assim se compreende o fascínio pelas máscaras que inspiraram e inspiram tantos artistas do teatro e tantos escultores em todas as culturas e em todas as civilizações.” As máscaras são narrativas visuais complexas, cuja função é dar voz a um personagem. Carregadas de mistério e divindades, elas introjetam valores de culto aos rituais, possibilitando por algum momento ser “o outro” que, com poderes ocultos e inimagináveis se harmoniza ao grupo, que o acolhe em tempo e espaço determinados pela história cultural.
fonte: obvious