O primado da angústica – Por Pascal Bruckner

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   Por Pascal Bruckner

Autor de obras que indagam as fontes de frustração do homem atual, filósofo e romancista Pascal Bruckner vem ao Brasil para palestras. Ele fala à Folha não só de como paixões são antídoto para a angústia diante do inatingível, como a felicidade e o amor perfeito, mas também de política, outro tema de seu interesse.

O filósofo e romancista francês Pascal Bruckner, 65, não se compraz em viver no mundo das ideias apolíneas, em tecer teorias acerca do amor e da felicidade ilibados. Pelo contrário. Seus ensaios e artigos recentes buscam justamente desconstruir esses dois conceitos, fontes de angústia e frustração para o homem contemporâneo, segundo o pensador, que vem ao Brasil para participar do ciclo Fronteiras do Pensamento.

Bruckner acredita que a economia capitalista enxergou uma janela de oportunidade no hedonismo que a revolução comportamental dos anos 1960 legou: seria ela a provedora de tudo aquilo que conduzisse à realização pessoal, ao êxtase. Assim, a lógica de mercado se infiltrou em terreno até ali inexplorado: entre quatro paredes.

“O amor agora é submetido ao regime da performance, ao imperativo do absoluto”, resume o escritor, falando à Folha em seu apartamento em Paris. “A felicidade vira não mais um direito, mas um dever.” Para Bruckner, é preciso pôr fim à busca inócua do sublime e se deixar levar por paixões (não só carnais). “São elas que nos fazem humanos, e não robôs afoitos à procura de algo inencontrável”, diz ele, que, associado no começo da carreira ao grupo dos “novos filósofos” de extração esquerdista liderado por Bernard Henri-Lévy, mais tarde seria classificado de “neocon” (neoconservador), ao declarar voto em Nicolas Sarkozy na eleição de 2007.

Na conversa, o autor do romance que inspirou o filme “Lua de Fel” (1992), de Roman Polanski, fala ainda sobre os ecos do antissemitismo do pai em sua vida, a modorra da França de François Hollande e a relutância incomodada da Europa em assumir papel mais incisivo na arena política internacional, outro de seus temas-fetiche. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Folha – Na autobiografia que o sr. lançou há pouco na França, “Un Bon Fils” [Grasset, R$ 70, 264 págs.] (um bom filho), seu pai surge como um homem ultraviolento e antissemita convicto. Sua escolha da filosofia como carreira tem a ver com esse histórico familiar?
Pascal Bruckner – Certamente, mas a um ponto que não consigo determinar com precisão. Acho que o elo entre esse pai nostálgico do Terceiro Reich e a minha carreira é o desejo de compreender por que abraçamos ideologias assim, por que somos insensíveis à refutação delas e ao remorso. Há uma ligação, mas indireta.

E por que esperou a morte de seu pai para publicar o livro?
Era necessário. Teria sido violento demais para ele. Não tinha vontade de magoá-lo. Era algo incômodo para mim. É como um segredo que todo mundo conhece, mas do qual ninguém quer ouvir falar. Mesmo que eu tenha dito a ele que não concordava com seu ódios aos judeus e que um dia escreveria sobre o assunto, tratava-se de um homem doente, cansado… e era meu pai.
Detestei o meu país por muito tempo. Só fui tomar vinho, por exemplo, aos 40 anos. Era uma maneira de manter distância das minhas origens e do meio em que havia vivido. Para mim, a França era uma pequena província em que sufocávamos em convenções, na hipocrisia e na mentira. Precisei sair daqui, morar dois anos nos EUA, para me reconciliar com ela.

Em “Fracassou O Casamento por Amor?” [trad. Jorge Bastos, Difel, R$ 30, 108 págs.], o sr. diz que a expectativa atual do amor perfeito mina as relações conjugais tanto quanto, no passado, matrimônios arranjados solapavam sentimentos. Ainda se idealiza tanto o amor?
Vivemos uma mistura de romantismo agudo e consumismo sexual exacerbado, uma era em que amamos a ideia do amor acima de tudo. Cobra-se que a mulher seja uma amante ensandecida mas também exemplar mãe de família, profissional bem-sucedida, culta, sadia. E o homem deve ser igualmente um virtuose do sexo, bom no trabalho, pai amoroso, sujeito engraçado. É óbvio que isso conduz a um esgotamento, porque o amor é submetido ao regime da performance. Esse amor do amor faz com que abandonemos uns aos outros assim que advém qualquer decepção. Esquece-se que amar é aceitar as fraquezas do outro e as nossas próprias, construir algo ao longo do tempo, à base de falhas, oscilações, mudanças de intensidade do sentimento. Pode-se desejar menos o outro sem querer deixar de ficar junto, porque a ternura leva a melhor sobre a exigência passional. Submetemos nosso amor ao imperativo do absoluto, um deus implacável. Isso é desumano.

Mas o sentimento e a libido são necessariamente irreconciliáveis a partir de certo ponto da relação?
Não. O problema é que a sexualidade virou uma espécie de medida da intensidade da relação. As pessoas se forçam a fazer amor, buscam todas as combinações possíveis para despertar o desejo. O terror é o da extinção das paixões, da frigidez, de não alcançar a ereção. As revistas femininas a cada semana trazem novas receitas para reacender a libido. O sucesso da estupidez que é “Cinquenta Tons de Cinza” é um sintoma disso. Liberamos Eros, mas agora nos damos conta com horror de que, ao extinguir os interditos, talvez tenhamos liquidado também o prazer. Sem tabus, não há mais perigo. Passamos do medo das paixões ao temor de vê-las morrer.

Contra essa expectativa irreal, o sr. faz no livro um apelo à trivialidade no amor. Não é da natureza humana aspirar ao tal absoluto de que o sr. falava há pouco?
Sou partidário dos “arranjos à francesa”, como definidos por Bertrand Russell [filósofo britânico, 1872-1970] em 1926. Ele dizia que os franceses tinham encontrado a sabedoria conjugal: grande liberdade do homem e da mulher em suas aventuras amorosas, sem desmantelar a família. Cada um leva sua vida, e o casal se mantém em torno do essencial: a estima, a ternura e o prazer de estar junto. É uma solução oposta à americana, em que o casamento deve ser fundado na honestidade, na fidelidade. É preciso incluir na discussão amorosa uma certa fraqueza dos cônjuges diante das tentações. É a via latina do desejo: o ser humano é imperfeito, tende a mentir, a ceder a prazeres momentâneos, mas não se trata de crime irremediável. Em 2006, no livro “A Tirania da Penitência” [trad. Rejane Janowitzer, Difel, R$ 40, 240 págs.], o sr. sugeria que o remorso europeu por seu histórico bélico inibiria intervenções no exterior. Não é o que se vê na África e no Oriente Médio. Somos um velho continente gangrenado pela culpa. Nossa apatia é fruto temporão de uma consciência pesada; queremos nos abster, nos retirar da história, porque nossa participação já foi tão abominável… os obstáculos são psicológicos e culturais, não econômicos. A Europa se reergueu da Segunda Guerra, reatou com a prosperidade, mas é incapaz de se constituir em ator político dotado de Exército forte. Poderíamos agrupar nossos orçamentos de Defesa e criar uma Força europeia, que protegesse as fronteiras contra o expansionismo russo, mas que poderia atuar se necessário no Iraque, na África. Ainda bem que a França interveio no Mali [em 2013] e na República Centro-Africana [idem] para evitar um genocídio e que agora estamos constituindo uma espécie de “corredor anti-jihad” do Senegal ao Djibuti. Porque, no geral, todo o trabalho recai nas costas dos EUA. Mas Obama não quer mais guerra.

O sr. apoiou em 2003 a operação militar anglo-americana no Iraque. Como avalia essa ação, à luz do fortalecimento atual do Estado Islâmico no norte do país?
Acho que não há relação de causa e efeito entre os dois fatos. Fiquei feliz com a queda de Saddam Hussein (1937-2006); depois, os erros da administração Bush foram enormes. Mas não se pode imputar tudo aos EUA. Cabe aos árabes resolver seus problemas e reformar uma religião problemática, assombrada pela memória de uma grandeza perdida, lembrança que gera ressentimento em relação ao Ocidente. O islamismo radical é o dilema do século. Por isso, é preciso encorajar os líderes esclarecidos que se propõem a reler o Corão à luz da razão. O termo islamofobia foi retomado por fundamentalistas para proscrever críticas à religião, transformadas em racismo. Assim, a religião mais violenta do mundo hoje se cobre dos mantos de vítima.

Como vê o atual quadro político e econômico francês, com o governo de François Hollande extremamente mal avaliado, incapaz de reverter a curva do desemprego e conter o avanço da dívida?
A França sofre de um orgulho absurdo. O país se mostrava simpático à união com a Europa, desde que o continente adotasse o seu modelo. A resposta foi “não, obrigado”, e o paradigma francês se espatifou. Ele é caro demais, perdulário. E o país é um dos únicos a cultivar um ceticismo extraordinário em relação ao mercado: a empresa é má, o lucro é criminoso. Se você é bem-sucedido, é culpado de alguma maneira, fez concessões, foi conivente. Na política, [o ex-presidente Nicolas] Sarkozy está de volta [disputa o comando de seu partido, a UMP, e busca se cacifar para concorrer ao Eliseu em 2017], mas é um Dom Quixote cansado. As pessoas não confiam mais nele.

No mês passado, a imprensa noticiou que o governo vai enxugar a Previdência. É o fim do Estado de bem-estar social à francesa?
A França é um país corporativista, em que o Estado compra a paz social distribuindo benefícios a todas as categorias. Hollande continuou nessa toada até perceber que não funcionava mais. Então deu marcha a ré, mas já era tarde. Depois de ter dito que não gostava dos ricos e do mundo financeiro, virou o melhor amigo deles. Estamos tentando criar uma esquerda liberal. Mas neste país vai ser complicado, porque o liberalismo é visto como um diabo. Outro problema é nossa ignorância total do exterior. Preferimos errar a nos inspirar em modelos estrangeiros. Esse país está enlouquecendo, há uma espiral de irracionalidade.

Em “A Euforia Perpétua” (Difel, 2002, esgotado), o sr. afirma que a promessa de felicidade terrena inaugurada pelo Iluminismo foi deturpada nos anos 1960. Por quê?
A felicidade virou não mais um direito, mas um dever. Os anos 1960 e sua revolução individualista estenderam as regras de mercado a setores até então impermeáveis a elas: a intimidade, a sexualidade, a espiritualidade, o bem-estar. Essa incitação à felicidade nos fez seres extremamente ansiosos. Temos medo de não estar à altura dos ideais que fixamos para nós. A sociedade da felicidade vira também a do desespero e da angústia.

Deveríamos então nos contentar com pequenos prazeres e alegrias efêmeras, como o sr. diz no livro?
É preciso fazer com que as pessoas se sintam menos culpadas por não serem felizes o tempo todo. Para substituir essa obrigação, proponho o reinado da paixão. Felicidade, como dizia Charles Fourier [filósofo francês, 1772-1837], é ter várias paixões e diversos meios para saciá-las. A felicidade é da ordem da graça, e não da do trabalho. Essa incompreensão é a base da neurose americana. Nesse sentido, se há uma sabedoria europeia, ela reside justamente no ceticismo, no entendimento dos limites do homem, o que não impede que se viva uma cultura de prazeres.

Fonte: Folha de S.Paulo

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