Discurso contra fiscalização do Ibama é apologia ao crime, diz presidente do órgão

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A presidente do Ibama, Suely Araújo, disse que o discurso público contra a fiscalização do órgão é uma “apologia ao crime e às irregularidades” ambientais.

Em entrevista à Folha, Suely não citou diretamente o presidente eleito Jair Bolsonaro, que repetidas vezes têm atacado o trabalho de fiscalização do órgão ambiental, mas afirmou que a tensão para fiscais do Ibama está crescendo dia a dia, com moradores interditando estradas e ameaçando abertamente os funcionários que coíbem crimes ambientais.

Nesta quinta-feira (12), em vídeo divulgado em redes sociais, Bolsonaro acusou suposta “indústria de multas abusivas e extorsivas” do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

No último dia 1º, ele havia dito que vai acabar com a “festa de multas” do Ibama. No dia 9 de novembro, Bolsonaro ameaçou extinguir um recém-implantado programa de conversão de multas pelo qual o órgão espera injetar R$ 1 bilhão em projetos de recuperação ambiental.

Segundo a presidente do Ibama, o resultado de um afrouxamento dos métodos e rigores atuais da fiscalização do órgão seria “muita degradação ambiental”.

Existe uma festa de multas no Brasil?

De forma alguma. As multas aplicadas pelo Ibama são em decorrência do grande número de infrações ambientais que ocorrem no país. O Ibama é um órgão fiscalizador, que exerce o poder de polícia ambiental em diferentes facetas, seja na fiscalização estrito senso seja no recenseamento ambiental.

Realiza em média 1,4 mil operações de fiscalização por ano, é bastante coisa, talvez perto da metade na Amazônia Legal. E muito do que o Ibama faz nesse campo é em caráter supletivo ao que os estados deveriam estar fazendo e não fazem. Os estados têm dificuldade de fazer a fiscalização.

Qual o resultado em multas?

A média nos últimos dez anos tem sido de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões por ano. Essas multas na sua maior parte não são pagas. O pagamento histórico é só de cerca de 5%.

Quando você autua, é a primeira fase de um processo sancionador ambiental. Há todo um processo administrativo que pode ser bastante demorado, principalmente se o infrator usar todos os recursos administrativos possíveis. E várias vezes, no final do processo, o autuado vai para a Justiça.

Qual o destino dos valores das multas?

O valor não vem para o Ibama, isso é muito importante destacar. Não vem e o Ibama não tem a mínima intenção de que isso entre no caixa da autarquia. Dos valores das multas ambientais, 20% daquilo que é pago vai para o Fundo Nacional do Meio Ambiente, que é gerenciado pelo Ministério do Meio Ambiente para financiamento de projetos ambientais, e os outros 80% vão para o Tesouro.

O presidente eleito teria dito isso porque está mal informado?

Existe muita reclamação em geral de diferentes setores. O pessoal, por exemplo, da cadeia da madeira, o da mineração, o da agropecuária. Também existe muita reclamação em relação a suposto excesso de multas e ao valor das multas.

A resposta do Ibama é que o que tem excesso na verdade são as infrações à legislação ambiental. É uma pena que o Ibama ainda tenha que aplicar tantas multas em razão de infrações ambientais e muitas vezes em razão de crimes ambientais. Enquanto ocorrerem esses ilícitos, seja o Ibama, sejam os outros órgãos que têm o poder de polícia ambiental, eles têm que atuar.

Se está ocorrendo aquela infração, eles têm o dever legal. Você é obrigado a agir, não é uma opção. Então nós estamos fazendo o nosso papel. Muitas vezes o pessoal reclama e eu acredito que essa reclamação chega aos ouvidos do presidente eleito e de vários outros atores políticos.

Na sua opinião, qual seria o impacto para o ambiente do país de um afrouxamento dos métodos atuais da fiscalização?

Muita degradação ambiental. Nós já temos uma tendência de crescimento das taxas de desmatamento da Amazônia. O Ibama tem uma pegada forte em relação ao controle de desmatamento na Amazônia porque os órgãos estaduais da região têm uma estrutura muito pequena de fiscalização, muito pequena. Quem atua na prática na Amazônia é o Ibama. Temos atuado muito em garimpos que se situam em terras indígenas, em unidades de conservação. A mineração sem os cuidados necessários causa danos irreversíveis.

Uma coisa importante de falar da fiscalização é que ela é cada vez mais baseada em alta tecnologia. […] Mas o comando e controle nunca vão ser suficientes para resolver os ilícitos ambientais. Em qualquer região do país eles têm que entrar juntos com medidas de apoio à socioeconomia dessa região e ações de regularização fundiária. Só que essas áreas não estão no campo de atuação do Ibama. O Ibama é a polícia, essas outras ações têm que vir de outros ministérios.

E não estão vindo?

Muito menos do que deveria. Na verdade o Ibama não acha que as ações de fiscalização sejam suficientes. Eu pessoalmente defendi a vida inteira instrumentos econômicos da política ambiental, inclusive pagamento por serviços ambientais.

Só que não é o Ibama que responde por tudo isso. A parte de regularização fundiária da Amazônia é crucial, só que o Ibama não faz regularização fundiária. Então nós estamos fazendo aquilo que é a nossa parte, e chamando muita atenção, porque é uma atuação mais rigorosa, mais forte, mais polícia e que gera reação da população, gera reação dos representantes políticos dessa população.

Mas é a nossa missão e nós temos que fazer. Qualquer um que venha a ser presidente do Ibama não vai ter outra postura.

Qual seria o número mínimo necessário de fiscais?

O Ibama tem 5.000 vagas em aberto. Nós tínhamos 1.600 fiscais há dez anos, hoje são 850 e precisaríamos com urgência de no mínimo 500 novos fiscais. Há um pedido de 1.800 vagas para o Ibama como um todo que está no [Ministério do] Planejamento.

Em relação ao licenciamento, há uma crítica frequente de que o Ibama estaria retardando ou demorando na concessão da licença para os empreendimentos.

Crítica de quem não conhece a realidade dos órgãos públicos. Muitas vezes se dão solução para problemas que você não sabe se eles existem.

O Ibama responde por uma pequena parte dos licenciamentos do país. As secretarias estaduais de Meio Ambiente e seus órgãos vinculados fazem provavelmente 90% das licenças do país. As licenças do Ibama chamam tanta atenção porque têm muitos empreendimentos gigantes aqui, as grandes hidrelétricas, as linhas de transmissão que vão lá do Pará até o Rio de Janeiro aquele mega empreendimento em geral vai ser do Ibama.

Em geral são empreendimentos complexos, com a participação de vários atores. É comum ter participação da Funai, do Iphan, do ICMBio. O Ibama funciona como se fosse um balcão único. Até teve alguém da equipe de transição, não lembro quem, do governo do presidente eleito que falou assim: ‘nós precisamos criar um balcão único para licença’.

Na verdade esse balcão já existe, é o Ibama. Aquilo que compete ao Ibama, não somos nós que estamos atrasados. Na área de petróleo, para se ter uma ideia, só em 2018 nós liberamos 24 licenças sísmicas, que é a fase inicial, 20 licenças da fase de perfuração e 46 licenças da fase de operação.

Em 2015, nós demos 689 licenças. Em 2018, vamos chegar perto de 600 licenças com 238 servidores na equipe, contra 453 em 2015. Aí que eu digo o esforço da equipe que eu considero muito admirável.

Se for mantida a expectativa de redução do número de funcionários de servidores no setor de licenciamento, qual a perspectiva para o novo governo?

Atraso nos projetos prioritários, o que temos conseguido a duras penas manter em dia. No mínimo [é necessário] acho que uns 30% de aumento no número de analistas ambientais, até mais do que isso, para se chegar a perto do que nós tínhamos dois, três anos atrás. Isso implica concurso público.

O presidente eleito fala em “ativismo ambiental xiita”. Isso existe? Se existir, atrapalha na análise dos pedidos de licenciamento?

Não. Nós procuramos seguir o prazo legal. Não tratamos de forma diferente tipologias de empreendimentos. Eu posso não ser favorável a termoelétricas, mas não vou deixar de licenciar termoelétrica porque prefiro eólica ou solar. Isso não existe.

A maior prova disso é a quantidade de licenças de petróleo que saíram neste ano. A equipe não faz isso. É cobrada a obedecer os prazos o tempo todo, trabalha sob extrema pressão. Não importa se ela é favorável ou não. Quem tem que estabelecer as regras, se o país tem que ter mais eólicas e solares, é toda a equipe de governo. Mas o Ibama é operacional, não é órgão de planejamento da política ambiental.

O desmatamento aumentou de um ano para cá. Havendo continuidade dessa tendência e, ao mesmo tempo, redução da fiscalização, qual seria o impacto econômico para o Brasil?

Acho fundamental para os produtores brasileiros do agronegócio que eles venham com uma espécie de chancela de que nós cumprimos a legislação ambiental. Acredito que o aumento do desmatamento vai prejudicar fortemente nossas exportações derivadas das agropecuária, além de madeira e minérios.

Toda a comunidade internacional sabe que é um país megadiverso, isso vai ser cobrado de quem está adquirindo esses produtos. Eu realmente temo de que um relaxamento do controle ambiental signifique efeitos muito negativos em termos do valor dos nossos produtos.

Qual o impacto da desistência do Brasil de sediar a COP-25?

Não é nem a COP aqui. É não sair do Acordo [de Paris], não sair da sistemática dos acordos do clima.

O presidente eleito já deu sinais de que pretende sair do Acordo.

O país sempre foi uma liderança nesse campo e sempre lutou até para reconhecimento de todo o valor que o país tem ao manter as florestas íntegras, ao controlar tudo isso em benefício do mundo. Tem tido já benefícios derivados disso, como os recursos do Fundo Amazônia, por exemplo.

Os noruegueses acabaram de anunciar que vão aportar mais recursos no ano que vem. Isso tem ajudado bastante. No caso do Ibama, os helicópteros da fiscalização e caminhonetes na Amazônia vêm sendo pagos com os recursos a fundo perdido do Fundo Amazônia. Não é só o Ibama que é beneficiado. No último dos contratos, foram R$ 150 milhões por ano.

O presidente eleito atacou também a conversão de multas por crimes ambientais para projetos tocados por ONGs. Qual o mecanismo dessa conversão?

A conversão de multas é prevista há 20 anos na lei de crimes ambientais como uma das possibilidades de tratamento administrativo da multa aplicada. A ferramenta chegou a ser aplicada pelo Ibama mas teve muitos problemas porque não havia um normativo consistente regulamentando e foi suspensa em 2012.

Quando entrei, o ministro Sarney Filho solicitou que eu retomasse uma discussão de um novo decreto que garantisse o destino para projetos mais estruturantes, que não fossem projetos pulverizados pelo país.

Foi feita uma equipe de trabalho que resultou em um decreto de outubro de 2017 que prevê duas possibilidades de conversão de multa. Na conversão você troca a multa que você iria pagar por serviços. Na verdade você paga, mas paga em serviços. Criou-se uma modalidade indireta para se garantir projetos mais estruturantes. Nela, o autuado passa a optar por apoiar financeiramente projetos aprovados pelo Ibama e pelo ICMBio.

A ideia é pegar áreas grandes do país que estejam com problemas ambientais e tentar uma locação de recursos mais significativa. O autuado fica corresponsável pelo acompanhamento dos projetos.

O primeiro chamamento público está em fase de julgamento em duas áreas do país: uma é na caixa d’água do São Francisco, dez bacias que juntas respondem por 70,6% da vazão do São Francisco na sua calha principal. Eu tenho dito que nós estamos plantando árvores para colher água.

Aplicado o desconto de 60% nas multas, temos hoje R$ 1 bilhão para aplicar no curtíssimo prazo. Para se ter ideia do que isso significa, o governo nos últimos 20 anos não gastou R$ 200 milhões em recuperação ambiental. Isso nós conseguimos sem televisão, no boca a boca, explicando o que era conversão.

Acredito que o sistema de conversão de multas é o único caminho que o país tem para cumprir suas metas do Acordo de Paris sobre restauração florestal. É uma ferramenta realmente viável porque o dinheiro vem.

Qual o reflexo do discurso antiambientalista e anti-Ibama na aplicação das multas?

O discurso antiambientalista, anti-Ibama, de uma [suposta] indústria de multas tem levado a dificuldades cada vez maiores na fiscalização de campo. Elas não são novidade, o Ibama não é exatamente querido pelo pessoal —acho que até é bastante querido por quem segue a legislação—, sempre existiram registros de conflitos no campo, mas o nível de periculosidade em campo no último ano cresceu muito.

Tem áreas no país em que nossos fiscais estão sendo recebidos a bala. No sul do Amazonas, acho que é o melhor exemplo. Você planejar operações no sul do Amazonas hoje significa quase se planejar para ir para a guerra.

Hoje o que está ocorrendo é que fiscalização da esfera do dia a dia está se tornando também perigosa. A gente sente uma reação muito grande no local. Você vai embargar uma sessaria, por exemplo, assim bem no meio de terra indígena ou do lado de terra indígena e sem qualquer documentação. A população vai ao local, faz manifestação no mesmo dia contra o Ibama, barra estrada, não quer deixar o Ibama sair.

Então tanto Ibama quanto o ICMBio têm sentido um nível de conflito maior. Nós acreditamos que o discurso antiambientalista contribui bastante para isso. Implica também em mais dificuldade de eu conseguir convencer os fiscais a saírem a campo. Eles não ganham nada a mais para ser fiscais, não ganham adicional de periculosidade. São analistas ambientais como quaisquer outros. Ele pode estar aqui no escritório fazendo uma questão técnica, por que ele iria a campo arriscado a tomar um tiro?

O discurso contra o Ibama, que está lá para cumprir a lei, está lá para fazer sua tarefa, atrapalha muito nesse nesse sentido

Ele é confundido com apologia ao crime e à irregularidade?

Sim, sim. À irregularidade, você achar que você seguir as normas ambientais “é desnecessário, é frescura, é coisa de quem quer atrapalhar o desenvolvimento do país”. E nós estamos lá tentando fazer a lei ser cumprida. É a nossa missão.

É uma pena que esse discurso esteja tão forte. Esse sentimento de preocupação está presente não só em mim, como presidente, mas nos diretores todos e em toda a equipe do Ibama. Nós vemos com muito pesar o fato de nossa tarefa, que é fazer a lei ambiental ser cumprida, ser confundida com um obstáculo ao desenvolvimento do país. O país não precisa de desenvolvimento que envolva a degradação ambiental. Isso não é desenvolvimento da forma que deveria ocorrer.

Para manter o estoque dos recursos ambientais, eu necessariamente tenho que seguir a lei ambiental, ela é feita para isso. A nossa legislação nem é extremamente protetiva, ela sempre previu a lógica da sustentabilidade, a compatibilização do desenvolvimento rural com a proteção ambiental.

Esse discurso anti-fiscalização de certa forma não contradiz o discurso da campanha vencedora de que deve preservar “a lei e a ordem”?

Luta contra a corrupção. Com certeza é absolutamente contraditório porque você cumprir a lei, você lutar contra o crime e a corrupção significa também aplicar a lei de crimes ambientais, aplicar o decreto 6514, respeitar os fiscais ambientais em campo e entender que eles têm uma missão de Estado que independe do governo que está de plantão.

Não importa quem é o presidente, a atividade de fiscalização ambiental tem que ser executada. Não é uma questão de opção política, é um dever, e é inaceitável que se pense em revogação da legislação que baliza esse tipo de dever, principalmente em termos de coerência com o discurso maior de fazer as leis serem cumpridas e de combater o crime no país.

Como a sra. recebeu a escolha de Ricardo Salles para o Ministério do Meio Ambiente?

Entre os nomes que foram veiculados, parece ser uma escolha coerente com as posições defendidas durante a campanha pelo presidente eleito. As primeiras manifestações do indicado causam preocupação no que se refere principalmente às mudanças climáticas e ao trabalho do Ibama. É importante que o futuro ministro compreenda as atribuições institucionais do MMA e entidades vinculadas em todo o seu alcance e complexidade. Há bastante documentação nesse sentido entregue à equipe de transição.

Folhapress

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