Por Marina Bessa
O caminho de Santiago entrou na minha vida há alguns anos, quando morei em Pamplona, primeira grande cidade espanhola pela qual passa o trajeto de peregrinação mais famoso do mundo. Existem muitas rotas que levam a Santiago – o mais conhecido é o francês, que começa, oficialmente, em Saint Jean Pied de Port, na França. Mas peregrinos não gostam de determinações oficiais. Isso porque consideram que essa é uma jornada individual, que pode começar onde você desejar, ser feita como você decidir e no tempo que necessitar. Não há certo ou errado. Há apenas a sua experiência e um desejo implícito de chegar diferente ao final do percurso.
No meu caso, não houve grandes revelações, ou sensações arrebatadoras. Cheguei até a pensar que, apesar da viagem inesquecível, nenhuma transformação ocorreria.
Mas, sem nos darmos conta, a caminhada diária de cerca de oito horas nos transporta a uma realidade paralela, em que nossa jornada é construída do zero. Onde ninguém sabe quem você é, o que faz, nem mesmo como se veste. Um pé atrás do outro, um dia atrás do outro, poucas decisões a serem feitas – acordar, caminhar, comer, dormir. E, aos poucos, seu corpo e sua cabeça entram em uma sintonia inédita, que muda seu olhar, sua resistência, sua percepção dos espaços e do tempo.
Ao terminar o percurso e olhar para trás, vi que o caminho é mesmo uma metáfora da vida. Dos vários ensinamentos, listei apenas aqueles que, até o momento, consegui decifrar.
Generosidade aquece a vida
Peregrinos são, por definição, amáveis e gentis. Sempre que passam, desejam “Buen camino!”. Sempre que encontram alguém cuidando dos pés, oferecem ajuda. Sempre abrem um sorriso para quem chega para dividir a mesa. Em cinco minutos, você faz amigos capazes de te ceder uma cama, oferecer os seus últimos anti-inflamatórios, diminuir o passo para te acompanhar por perceber que o dia está sendo duro para você. Acredite: você faria o mesmo. No caminho, é a predisposição em ser generosos que nos cerca de amigos e nos faz sentir queridos, protegidos e sempre acompanhados.
A gente se adapta, sempre
Eu achava que não iria caminhar sob chuva, que não iria suportar os albergues, que sentiria dor nas costas por carregar uma mochila de 6 kg durante todo o dia. Mas vi que a gente se adapta. Ao calor, ao frio, à chuva, ao vento. A gente se adapta a uma nova comida, a uma cama diferente a cada noite, aos roncos dos peregrinos cansados. A gente se adapta às pedras do caminho, ao asfalto quente, à trilha com barro encharcado. O que parecia difícil no começo logo vira uma rotina fácil de ser manejada.
A cabeça está no comando
Nos dias em que a minha meta era caminhar 20 km, os últimos quilômetros eram muito difíceis. Nos dias em que teria de caminhar 30 km, 20 eram fichinha e os últimos cinco ficavam intermináveis. Cheguei a caminhar 43 km em um dia, e adivinha? Os 30 primeiros passaram sem eu ver, e só nos últimos comecei a sentir sinais de cansaço. Não importa a quantidade: é a cabeça quem determina os limites. O corpo é forte e só chia quando ela avisa: “ei, já está quase acabando. Pode relaxar.”
O corpo fala
Você quer estar bem, pés sem bolhas, pernas fortes. O melhor a fazer é cuidar para detectar qualquer sinal de problema antes que ele dê as caras deverdade. O corpo dá todas as pistas: uma sensibilidade diferente nos dedos é sinal de que uma bolha vai aparecer, uma dorzinha de leve no tornozelo pode indicar uma tendinite, muito tempo sem ir ao banheiro é sintoma dedesidratação. Quem insiste em ignorar essas mensagens tem constantemente a sua caminhada interrompida. Os que escutam e atendem a esses chamados têm um caminho bem mais fácil e aumentam consideravelmente as chances dechegar bem até o final.
A beleza está por toda parte
Algumas paisagens são obviamente bonitas: montanhas verdes sob céu azul, um rio correndo entre campos floridos. Essa paisagem existe no caminho. Mas há também os dias de chuva, vilas abandonadas, campos áridos, planícies infinitas. E todas elas dão belíssimas fotos e são capazes de emocionar. Basta procurar o ângulo certo.
Depois da tempestade, vem a bonança
Houve dias de muito sol, de céu claro. E houve dias de chuva. Nesses dias, vestia minha capa impermeável e colocava música (estratégia reservada somente para os momentos mais desafiadores). Aí eu apenas andava, sem pensar no destino. Não havia nada que pudesse ser feito: era aceitar e esperar. Podia levar algumas horas ou alguns dias, mas a chuva sempre passava. E as más lembranças eram totalmente apagadas por um novo dia desol.
O caminho mais fácil nunca é o mais bonito
Às vezes o caminho se bifurca e você pode optar por seguir por uma estrada mais curta ou pegar uma trilha mais longa e montanhosa. Quem vai pela estrada sempre chega antes e mais descansado. Quem vai pela trilha chega tarde e esgotado. Mas sempre com as melhores histórias, as fotos mais lindas e uma sensação inigualável de ter superado um desafio.
As suas escolhas constroem o seu caminho
Havia algumas escolhas a se fazer: de onde vou começar? Vou dormir em albergues ou pensões? Andar em grupo ou seguir sozinha? Sair cedo para aproveitar a cidade de destino ou ir sem pressa para chegar, aproveitando as pequenas surpresas do percurso? O caminho é feito de escolhas. Nem mais certas nem mais erradas. Mas determinantes e, muitas vezes, irreversíveis. Elas fazem com que o seu caminho seja só seu.
Um pouco de planejamento estrutura. O excesso aprisiona
Era importante começar o dia sabendo em que cidade eu pretendia dormir. Foi fundamental estudar o percurso para saber se precisava levar mais água ou algum lanche. Por outro lado, sair de casa com todas as paradas decididas, hotéis reservados e data de chegada inflexível quase tornou minha jornada burocrática. Como planejar tanto alguma coisa que você não conhece? É preciso deixar espaço para o improviso – ele pode mudar nossos planos para melhor.
Despedir-se
Faz parte da vida a gente conhece pessoas incríveis pelo caminho, com quem compartilha momentos inesquecíveis. Mas sempre chega a hora de dizer adeus – depois de um dia, uma semana ou um mês. É preciso ter consciência disso, não para evitar o apego, mas para desfrutar com intensidade cada momento que vai passar com elas. E quando for a hora de se despedir, é preciso deixar claro o quanto elas foram importantes para o seu caminho. Sua felicidade não pode depender de ninguém, mas é bom saber que com algumas pessoas você é ainda mais feliz.
Esteja sempre atento
Aos sinais o caminho é todo marcado por sinais: quem está atento dificilmente se perde. Em uma bifurcação, bastava parar, olhar atentamente e buscar a seta amarela. Ela sempre estava ali, mostrando por onde seguir. A vida também é assim, cheia de sinais. Mas é preciso estar pronto para decifrá-los (de que serve uma seta amarela na sua frente se você não sabe o que ela significa?).
Você carrega o peso dos seus medos
Para ter um caminho tranquilo, é preciso levar uma mochila leve. E o que deixa a mochila pesada são nossos medos. Medo de ficar doente, de passar frio, deter fome. E aí a mochila se enche de itens desnecessários. Há farmácias, lojas, vendas pelo caminho. Encher a mochila é sofrer por antecipação e tornar a jornada muito mais penosa.
Pessoas são a essência de tudo
Terminado o caminho, são muitas as lembranças. E elas estão cheias derostos. Às vezes me esqueço do nome de um vilarejo, mas nunca de quem me acompanhou naquele dia. Posso não me lembrar do que jantei em um restaurante, mas sempre me lembro de quem jantou comigo. Os lugares foram melhores ou piores de acordo com a companhia do dia. Cerque-se das pessoas certas e tudo estará bem.
Somos todos iguais
Na mochila cabem poucas coisas – só as essenciais. Todos usam as mesmas vestimentas, dormem em lugares simples, comem nos pequenos bares que encontram pelo caminho. Ali, a gente se despe de qualquer vaidade, perde a profissão, deixa para trás o passado. Não é possível fazer qualquer distinção entre classes sociais, raças ou credos. No caminho, resumidos à nossa essência, todos somos iguais.
O importante não é chegar, é caminhar
Chegar a Santiago não é a melhor parte, nem o dia mais importante da viagem: é só uma consequência inevitável. O desfecho do qual não é possível fugir (e quem não escolheria caminhar mais um pouco?). Mais importante que chegar é aproveitar cada dia do caminho. A nostalgia de chegar ao final é inevitável. Ela pode gerar uma tristeza imensa por representar o fim de todas as possibilidades ou ser compensada pela sensação plena de ter vivido intensamente.
Fonte: Vida Simples