Bolsonaro é diplomado no dia dos 70 anos da aprovação na ONU da Declaração Universal dos Direitos Humanos


É, portanto, um dia adequado para contar a história de um trabalhador torturado por um ‘superministério’ do último presidente militar do Brasil eleito pelo voto direto

Por Hugo Souza

Bolsonaro é diplomado no dia dos 70 anos da aprovação na ONU da Declaração Universal dos Direitos Humanos
Registros da prisão política do operário Lucidio de Castro e Souza no governo de Eurico Gaspar Dutra (Foto: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro)

Está no prontuário policial número 42.442 da Divisão de Polícia Política e Social (DPS) do antigo Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), órgão do ministério que naquela feita chamava-se da Justiça e dos Negócios Interiores: o operário Lucidio de Castro e Souza foi preso na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, no dia 2 de maio de 1949, durante o governo Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), após ser abordado na rua por policiais que disseram ter encontrado com ele “material de propaganda comunista”.

Na época, Lucidio tinha 34 anos e exercia o oficio de caldeireiro de ferro na ilha do Mocanguê, em Niterói, a serviço da Companhia de Navegação Lloyd Brasileira. Cerca de um ano e meio antes de sua prisão, em outubro de 1947, Lucidio e mais oito operários do Mocanguê tinham enviado um telegrama para a presidência da República, ao próprio Dutra, protestando contra as sistemáticas depredações das oficinas do jornal Tribunal Popular, órgão de imprensa do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que aconteciam sob a cumplicidade do chefe de polícia Pereira Lima.

O Tribuna deixaria de circular pouco tempo depois, no fim de 1947, quando ao “Partidão” mais uma vez fechava-se o cerco para atirá-lo à ilegalidade. Questionado, quando foi preso, sobre sua ligação com o Tribuna Popular, Lucidio respondeu que havia adquirido uma ação do jornal, logo que ele foi aberto, “com o fito exclusivo de auferir renda”.

Cópia de telegrama enviado ao presidente Eurico Gaspar Dutra em outubro de 1947, pouco antes de o Tribuna Popular deixar de ser impresso, por nove operários da ilha do Mocanguê, entre eles Lucidio de Castro e Souza

Questionado sobre para onde se dirigia quando uma viatura policial interrompeu-lhe o passo em São Gonçalo, o caldeireiro declarou que estava a caminho da casa do sogro, “para matar um porco”. “Um porco” era como nos meios operários chamavam quem fosse um fascista. O delegado Cecil Bohrer, notório simpatizante do nazismo, estava presente no interrogatório de Lucidio na qualidade de chefe da seção.

“Lembro do estado em que meu pai chegou em casa, após longo período de tortura, com o corpo todo coberto de hematomas, ainda vomitando sangue por causa das hemorragias internas”, conta a mais velha dos sete filhos de Lucidio, Solange, que na época tinha apenas quatro anos de idade.

Lucidio tinha 74 quando morreu, em junho de 1989. Os registros de sua prisão pela polícia política do governo Dutra estão hoje sob os cuidados do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj). Foram guardados, inicialmente, “graças” ao decreto-lei 20.532 de 1946, que atribuiu à DPS a incumbência de manter atualizado “o fichário e a galeria fotográfica de indivíduos expulsos do território nacional e dos reconhecidos como nocivos à ordem pública e aos interesses do país”.

‘Vigilância político-social’

Nesta segunda-feira, 10 de dezembro, está sendo diplomado o primeiro presidente militar do Brasil eleito pelo voto direto desde o general Eurico Gaspar Dutra: o capitão de artilharia Jair Bolsonaro, que prometeu: “esses marginais vermelhos serão banidos da nossa pátria”. Diante de Lucidio, Bolsonaro já deu mostra do que diria: “pela memória do delegado Cecil Bohrer, o pavor de Lucidio de Castro e Souza”. Nesta segunda, dia da diplomação de Bolsonaro, completam-se 70 anos da aprovação na ONU da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Dutra foi eleito presidente da República em 1945, com 55,39% dos votos válidos, amealhando a preferência de 3.251.507 eleitores num Brasil onde a maioria da população era analfabeta e aos analfabetos não era permitido votar. Bolsonaro foi eleito em 2018, com 55,13% dos votos válidos, votado por 57.797.847 brasileiros. A maioria deles, ao contrário do completo analfabeto político descrito por Bertolt Brecht, a maioria deles muito ciente sobre “o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio”.

Em maio de 2019 fará aniversário de 70 anos, também, a prisão e tortura de Lucidio pelos órgãos do “superministério” da Justiça do governo Dutra incumbidos da “vigilância especializada do ponto de vista político-social”, como previa a portaria 4.333, também de 1946, que regulamentou o Serviço de Investigações da DPS.

Há 70 anos, o “superministro” da Justiça dos Estados Unidos do Brasil era Adroaldo Mesquita da Costa, um antecessor de Sérgio Moro que, animado com a possibilidade de ser o candidato de Dutra à presidência nas eleições de 1950, demitiu-se do cargo em abril daquele ano, a dias do prazo para a desincompatibilização. Sua candidatura à sucessão de Dutra acabaria sabotada por correntes políticas que lhe eram concorrentes. Civil, o máximo que Adroaldo da Costa logrou no futuro foi ser “consultor da República”, entre 1964 e 1967, na Ditadura Militar.

Amuleto

Menos como relíquia, mais como amuleto, a família de Lucidio preservou sua carteira de trabalho, onde constam as anotações dos nove empregos formais por ele ocupados ao longo da vida, nos ofícios de caldeireiro, servente, chapeador e montador de 3ª classe. Emitida em janeiro de 1936, ela é de um tempo em que se chamava “Carteira Profissional” e não trazia anotado em suas folhas, por assim dizer “de fábrica”, nem um direitozinho sequer; trazia no máximo latente, talvez escondido, como as mensagens secretas escritas com suco de limão, que “toda a beleza da humanidade irradia desses homens endurecidos pelo trabalho”.

É também, portanto, espólio de Lucidio, de Arecy, dos operários em geral da ilha do Mocanguê, de quem mais disse “presente!” na história das lutas por direitos no Brasil, que mais tarde a Carteira de Trabalho e Previdência Social brasileira passasse a trazer impresso em suas primeiras folhas o inciso I do artigo XXIII da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego”.

fonte:O&N

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