‘Isolamento da prisão é como acordar da bebedeira. Todo dia’, diz ex-guerrilheiro alemão na Flip

Egresso do grupo Baader-Meinhof, Lutz Taufer passou 10 anos em comunidades do Rio

Lutz Taufer, ex-guerrilheiro alemão que morou no Brasil e escreveu o livro – Márcia Foletto / Agência O Globo

POR SILVIO ESSINGER

PARATY – Um alemão, nascido no final da Segunda Guerra, chega à juventude cheio de sonhos revolucionários, insuflados pelos movimentos de 1968, e passa a integrar o grupo Baader-Meinhof. Em 1975, numa ação desastrada, ele e mais cinco companheiros armados invadem a embaixada alemã em Estocolmo e matam dois reféns até serem capturados ou mortos. Seguem-se 20 anos na prisão e a descoberta do Rio de Janeiro, onde passaria 10 anos envolvido com trabalho comunitário em favelas. A vida de Lutz Taufer, 74 anos, daria um filme. Ou, por enquanto, um livro: “Atravessando fronteiras: da guerrilha urbana na Alemanha ao trabalho comunitário nas favelas brasileiras” (Autonomia Literária), que ele lança este sábado, às 18h, na FLIPEI, destaque da programação paralela da Flip 2018.

Em bom português, na varanda arejada de uma pousada em Paraty, Lutz contou ter crescido em uma Alemanha ainda sob a sombra do nazismo, em que professores que tocavam discos de Hitler durante as aulas e pais se recusavam a falar sobre nazismo com os filhos (o seu pai, ele se orgulha, atuou na resistência).

— Tivemos que experimentar muito (em termos de ativismo político), e o movimento feminista alemão foi o que ficou mais famoso. Nossa inspiração positiva foi que no Vietnã um exército camponês em sandálias derrotou o exército mais poderoso do mundo. Che Guevara dizia: sejamos realistas, peçamos o impossível. Hoje é muito difícil para as gerações mais novas entender isso — lamenta o alemão. — Nós não achávamos que poderíamos fazer uma revolução sozinhos na Alemanha, entendíamos o contexto internacional da nossa luta em 1968.

‘Acho que o grande problema da esquerda dos últimos 150 anos é que ainda não conseguiu oferecer um modelo mais atraente para a sociedade livre do que o capitalismo.’

– LUTZ TAUFEREscritor

Ele vê hoje aquele pós-68 como uma época em que “as opiniões eram exageradas”. E exercita um olhar mais crítico sobre o período:

— O nosso erro foi ter tido uma imagem leninista da revolução, de que o capitalismo poderia ser destruído. Não acredito nisso. Acho que o grande problema da esquerda dos últimos 150 anos é que ainda não conseguiu oferecer um modelo mais atraente para a sociedade livre do que o capitalismo. É nisso que tínhamos que trabalhar, com economia solidária, com empoderamento.

Nas páginas de “Atravessando fronteiras” é possível acompanhar como, a partir de 1972, integrantes do Baader-Meinhof começam a ser detidos por seu ativismo político e são mandados para prisões, em regime de isolamento como forma de tortura. Logo, eles responderam com greves de fome, reivindicando o direito de serem tratados da mesma forma que os presos comuns:

‘Para matar alguém, você tem que se desligar da moral, tem que se fazer duro. Se você deixa surgir dúvidas, não consegue fazer aquilo.’

– LUTZ TAUFEREscritor

— Nós, de fora da prisão, fizemos muitas ações para apoiar os nossos companheiros encarcerados. Mas não deu certo e um deles faleceu. Achávamos então que era a hora de assumir uma tarefa e preparamos um pouco rápido demais essa tomada da embaixada. Exigimos a libertação de 26 presos políticos ou mataríamos um refém por hora. Matamos dois. No fim, quatro de nós foram presos e dois morreram.

Lutz diz ter precisado de um bom tempo “para entender que matar reféns não tem nada a ver com a busca por uma sociedade mais justa e humana”:

— Mas desde o início tive dúvidas sobre a necessidade da luta armada. Mais tarde, na cadeia, escrevemos cartas criticando assassinatos cometidos pelo grupo. Para matar alguém, você tem que se desligar da moral, tem que se fazer duro. Se você deixa surgir dúvidas, não consegue fazer aquilo. A decisão de cometer um crime brutal desses você não toma de um dia para o outro.

BRASIL POR INFLUÊNCIA DA BOSSA NOVA

Em 17 dos 20 anos de prisão, Lutz passou por vários graus de isolamento e de estresse. Fez nove greves de fome — uma delas durou nove semanas e ele quase morreu.

— Viver no isolamento era como acordar de uma bebedeira, só que todo dia. Eu tinha que lutar contra aquilo e passava meu tempo decorando poemas e fazendo cálculos — recorda-se ele, comentando que, mais para o fim de seu tempo na prisão, os carcereiros resolveram dar-lhe uma colher de chá um tanto amargo, levando-o para ver televisão junto com presos nazistas condenados por atrocidades em Auschwitz. — Era como na prisão em Guantánamo, quando forçam os islâmicos a comer carne de porco.

‘Antes de ir para a prisão, nunca poderia imaginar que um dia iria conseguir fazer uma greve de fome de nove semanas. Encontrei essa mesma coragem nas mulheres das comunidades carentes’

– LUTZ TAUFEREscritor

Quando saiu da cadeia, em 1995, Lutz Taufer encontrou um novo mundo:

— Fui viver com um amigo em Hamburgo. No meu primeiro dia de liberdade, eu acordei cedo e fui à estação central de trens para ver nos jornais se havia alguma matéria sobre a minha libertação. Vi muitos mendigos. E a segunda surpresa estava dentro da central: muitas lojas de roupas de luxo. Lá se mostrou a divisão da sociedade entre pobres e ricos. Hoje, ela é muito mais forte.

O alemão sempre teve um sonho de vir ao Brasil, por causa de Astrud Gilberto cantando “Garota de Ipanema” e do filme “Orfeu negro” (do francês Marcel Camus, rodado no Rio de Janeiro de 1958). Graças às boas relações da esquerda alemã com a América Latina e a uma irmã que morava no Uruguai, em 1998 ele visitou o Rio de Janeiro pela primeira vez.

— Quando cheguei à praia de Ipanema, pensei: esse é o máximo contraste com o que passei na prisão — conta ele, que voltaria outras vezes ao Rio até tomar a decisão de morar lá, numa casa em Santa Teresa. — Dei aulas de alemão, escrevi reportagens para jornais alemães, até que resolvi apareceu a oportunidade de projetos de economia solidária e teatro do oprimido com mulheres de comunidades carentes em São Gonçalo.

DESPERDÍCIO DE TALENTOS NAS FAVELAS

Entre 2003 a 2012, Lutz viveu como poucos estrangeiros o cotidiano do morador de favela do Rio de Janeiro:

— Antes de ir para a prisão, eu nunca poderia imaginar que um dia iria conseguir fazer uma greve de fome de nove semanas. Eu encontrei essa mesma coragem nas comunidades carentes, nas mulheres dessas comunidades. Se para nós o fascismo foi uma sombra, aqui ela é a escravidão. Minha tarefa era ajudar aquelas mulheres a encontrar sua autoestima, os seus talentos. A experiência mais triste na favela não foi a pobreza, mas a do desperdício dos talentos. Naquela região não havia possibilidades de os estudantes concluírem o segundo grau. E sem ele, você está perdido.

O alemão diz que gostaria de ter ficado de vez no Brasil, mas não conseguiu arcar com o preço do aluguel e dos planos de saúde. Ele acabou voltando para Berlim em janeiro de 2012. De longe, acompanha a tensão política pré-eleitoral do país.

— Em certos aspectos, vive-se no Brasil uma situação pré-fascista. E também na Alemanha, na França, na Itália, na Polônia, na Hungria… A conquista elementar do movimento de 1968 foi criar a sociedade civil, fazer política na rua, fora do Parlamento. Isso deveria ser defendido e ampliado. A sociedade civil está encolhendo em todo canto — alerta ele. — Hoje o mundo é muito mais complicado, mas não sou pessimista, apenas fico triste com certos acontecimentos. Ontem à noite, em Paraty, chegou um garoto da Juventude Comunista e me pediu conselhos. Eu disse que há limites que não podem ser ultrapassados, mas que, sem ultrapassar limites, você não tem futuro.

E se alguém desse esse mesmo conselho para Lutz e seus amigos em 1968?

— Ah, a gente mandava ele embora! — reconhece.

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