Alice Gonzaga tem 82 anos, mora de frente para a praia de Copacabana há 61 e há oito anos abre a janela de manhã não apenas para ver o mar, mas para acompanhar o canteiro de obras no terreno ao lado de seu prédio, na Avenida Atlântica, onde viu o arrojado projeto do Museu da Imagem e do Som, no Rio de Janeiro, começar a se erguer em 2010 – para até hoje não terminar.
“É um elefante branco na praia mais famosa do Brasil”, diz Alice, que se queixa de ratos e baratas vindos do canteiro de obras, e de moradores de rua que passaram a dormir ao lado dos tapumes que avançam pela calçada da avenida à beira-mar.
Moradores e comerciantes de Copacabana ouvidos pela BBC News Brasil reagem entre frustração, desconfiança e ironia ao falar sobre o prédio inacabado do MIS, que tinha sua conclusão prevista primeiro para a Copa do Mundo de 2014, depois para a Olimpíada, mas está parada desde fevereiro de 2016 – e ainda não tem data para acabar.
Com tanto atraso, alguns moradores e lojistas até dizem sentir falta da Help, a boate frequentada por turistas e garotas de programa que foi demolida para dar lugar ao museu.
“Pelo menos a Help trazia movimento para todo mundo”, diz o chaveiro Antonio Leitão. “Fazia o dinheiro circular.”
A nova sede do MIS ganhou um projeto arrojado do escritório nova-iorquino Diller Scofidio + Renfro, autores da famosa High Line em Manhattan, o parque suspenso em uma linha férrea, para abrigar um dos principais acervos de música e cinema brasileiros.
O projeto icônico, compatível com a ambição e o otimismo do Rio dos megaeventos, acabou virando um símbolo das dificuldades atuais do Estado, buscando se desatolar de uma crise fiscal.
Se os próximos passos seguirem os planos do governo, a inauguração deverá ocorrer em 2020.
Crise fiscal
O imbróglio envolveu a rescisão do contrato com a empreiteira responsável pela obra e o impasse posterior para viabilizar uma nova licitação diante da falência do Estado do Rio de Janeiro.
Embora tivesse os recursos para terminar a obra através de um financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Estado até hoje não conseguiu fazer a nova licitação por conta das restrições impostas pela “calamidade financeira” que decretou em 2016, diante de sua queda de arrecadação e crescente endividamento.
Inacabado, o museu virou uma “pedra no sapato” para todos os envolvidos, segundo uma fonte ligada ao projeto. “A nossa angústia é a mesma de todos os parceiros privados, dos moradores de Copacabana e da cidade do Rio de Janeiro, que querem ver isso mais do que pronto”, afirma a fonte, pedindo para não ser identificada. Os últimos meses foram de mobilização nos bastidores, com os principais atores envolvidos no projeto se reunindo em Brasília para traçar metas detalhadas para ressuscitar a obra.
“Copacabana merecia ter um museu bacana, com uma grife internacional. O Rio está perdendo uma oportunidade. O dinheiro está em caixa, já carimbado. É uma situação kafkiana”, diz a fonte, referindo-se às dificuldades de ter acesso aos recursos existentes para terminar a obra – e confiante de que a nova ofensiva vá fazer o processo andar.
Falta um ano de obras
Questionado pela BBC News Brasil, o Governo do Estado afirma, por meio de nota, que a construção está “70% pronta”. Sua conclusão custará R$ 39 milhões e demandará um ano de obras físicas e quatro meses para implantar equipamentos expositivos. Com isso, a previsão é que o novo MIS seja inaugurado em 2020.
Atualmente orçado em R$ 216 milhões – o que inclui compra do terreno, projetos, demolição, fundação, construção e acabamentos – o empreendimento é uma iniciativa do Governo do Estado do Rio, realizado e concebido em conjunto com a Fundação Roberto Marinho (FRM).
A fundação também está à frente de outros dois museus construídos na esteira dos grandes eventos do Rio, o Museu de Arte do Rio (MAR) e o Museu do Amanhã, ambos na Praça Mauá, na região portuária.
Ironicamente, o MIS foi o primeiro que começou a ser tocado. Tem recursos públicos e privados, recebendo recursos do BID, do Ministério da Cultura (Lei Rouanet) e de empresas.
O projeto teve sua pedra fundamental lançada em janeiro de 2010, após o escritório nova-iorquino Diller Scofidio + Renfro vencer o concurso internacional para a sede, em 2009. Uma das fundadoras, a arquiteta Elizabeth Diller figurou neste ano pela segunda vez na lista de 100 pessoas mais influentes do mundo da revista Time.
“O MIS é uma síntese dessa cidade”, disse o então-governador Sérgio Cabral na solenidade para dar início aos trabalhos, em 2010. Na ocasião, destacou a nova sede como uma “atração internacional” que ajudaria a revitalizar Copacabana “social e culturalmente”.
“Em 2016, não mais governador, já me imagino sentado no último andar do museu, assistindo aos Jogos Olímpicos que estarão acontecendo em Copacabana”, afirmou Cabral à época. O ex-chefe do executivo no Rio está preso desde novembro de 2016 devido a escândalos de corrupção e desvios de recursos públicos em seu governo.
Licitação travada
A obra parou após a rescisão do contrato com a construtora que venceu a licitação, a Rio Verde, em fevereiro de 2016. De acordo com o governo, o motivo foi “o não cumprimento dos serviços por parte da empresa licitada”. A BBC News Brasil apurou que a decisão foi motivada por reiterados pedidos de aditivos por parte da empreiteira sobre valores estabelecidos para a obra na licitação.
Em nota, a Rio Verde afirma que “o contrato foi encerrado por fatos imputáveis exclusivamente ao Estado do Rio de Janeiro, que descumpriu o ajuste contratual, ensejando o expressivo desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, impossibilitando a continuidade da obra.”
Após a rescisão, entretanto, a crise fiscal no Rio impôs obstáculos a uma nova licitação, pegando os atores envolvidos de surpresa.
Mesmo com recursos do BID já “garantidos” para a obra, refazer a licitação equivaleria a contrair um novo empréstimo – algo que o Rio, em regime de recuperação fiscal, se viu impedido de fazer. Assim, o financiamento do banco ficou inacessível.
“Devido à grave situação financeira estadual, o cronograma de construção previsto incialmente não pôde ser concluído”, justifica o Governo do Estado.
Grupo de trabalho
O Plano de Recuperação Fiscal do Estado do Rio de Janeiro, aprovado em setembro de 2017 em Brasília, criou as condições necessárias para que o financiamento fosse renegociado, mas os recursos ainda dependem de uma lista de requisitos para ser liberados.
O processo voltou a andar no fim de março deste ano, com uma reunião convocada no Ministério da Cultura com representantes do Governo do Estado, da Fundação Roberto Marinho, do BID e dos ministérios do Planejamento e da Fazenda, além do próprio MinC.
“Estabelecemos um passo a passo claro e estamos em contato permanente monitorando a evolução de cada etapa, entrando em campo quando necessário para acelerar o processo”, explica o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, à BBC News Brasil.
“Dói muito ver aquela obra paralisada, e eventualmente se degradando, sem que se consiga construir uma solução”, afirma.
De acordo com o ministro, o grupo de trabalho voltará a se reunir daqui a duas semanas.
A principal meta no momento é obter uma carta de anuência do BID permitindo a prorrogação de seu financiamento – que está dentro do escopo do Programa Nacional de Desenvolvimento de Turismo do Estado do Rio de Janeiro (Prodetur-RJ) e abrange outras iniciativas.
No fim de maio, o Conselho de Supervisão do Regime de Recuperação Fiscal, órgão que vem monitorando as finanças do Rio, deu seu aval para estender o Prodetur-RJ. Foi um primeiro passo para levar o processo adiante.
De acordo com Sá Leitão, a previsão, agora, é que o edital de licitação para a parte remanescente da obra seja publicado no início do segundo semestre deste ano.
Concluída a licitação, serão retomadas as obras no museu, que precisa concluir toda a fase de acabamentos – instalando desde luminárias e pisos a torneiras e vasos sanitários. Contando o período necessário para montar a estrutura expositiva, a atual previsão do Estado é que o museu seja inaugurado em 2020.
‘Percalços esquecidos’
Presidente do MIS, Rosa Maria Araujo diz torcer para que “todos os percalços” da construção possam ser esquecidos com a inauguração do museu – e os benefícios que espera que traga para a cidade.
“Estamos otimistas”, afirma. “Tem sido um processo longo e difícil, o que é justificável, dada a importância dessa obra para a cidade e para o Brasil. Acreditamos que falta pouco.”
O MIS é um centro de documentação que reúne coleções com fotos, partituras, textos, áudios e vídeos de ícones da cultura brasileira e carioca – como Nara Leão, Augusto Malta, Jacob do Bandolim e Elizeth Cardoso. O acervo soma, segundo Araujo, 300 mil documentos.
Atualmente, o MIS opera em duas sedes no centro do Rio, a mais antiga em um prédio tombado na Praça XV, a outra, na Lapa.
O novo MIS terá exposições de longa duração voltadas para temas como a história social do samba, o humor, a rebeldia do Rio e o carnaval – mostradas “de uma forma moderna, interativa e muito atraente”, segundo a presidente do MIS. “Estamos certos de que vai ser um sucesso”, diz.
‘Sacrifício para todos’
Enquanto montam as barraquinhas no calçadão de Copacabana em frente ao MIS, vendendo camisas do Brasil, cangas, suvenires e pinturas de arte naïf, os comerciantes que batem ponto na feirinha turística do Posto 5 monitoram sinais de evolução no prédio. Se continuar parado vai virar uma “cracolândia” em Copacabana, palpita um; “é mais uma obra milionária não concluída no Rio”, lamenta outra; “poderiam ter construído um hospital, uma escola”, diz uma vendedora.
Do outro lado da rua, em um dos quiosques da orla, o garçom Lázaro Senna diz que turistas sempre perguntam, curiosos, o que é aquela fachada arrojada na Atlântica.
A fachada com desenhos geométricos, e linhas em ziguezague, contrasta fortemente com os prédios geminados construídos há décadas na Avenida Atlântica. Ele torce para que o museu melhore o movimento de turistas e a reduza assaltos que diz terem sido frequentes local.
“Era para ser para a Copa, depois para a Olimpíada, e até agora não saiu do papel. É triste ver o dinheiro público indo pelo ralo”, considera.
Os sucessivos escândalos da Lava Jato no governo Cabral levam muitos a achar que o obra está parada por causa de desvios de recursos ou corrupção.
O ministro Sérgio Sá Leitão rebate a ideia, e frisa que os problemas do MIS foram ocasionados pela queda de arrecadação e pela crise fiscal do Rio.
“Não conseguimos identificar irregularidades em todo o processo do MIS, nem nada que pudesse ligar o projeto a esses escândalos (de corrupção) que estamos vendo aí”, afirma Sá Leitão.
Os vizinhos imediatos do MIS, porém, não veem a hora de o processo terminar. Os prédios adjacentes sofreram com um afundamento do terreno arenoso do museu na primeira fase das obras, que resultou em uma longa rachadura crescendo verticalmente entre edificações geminadas vizinhas à obra, preenchida por uma manta para impermeabilizar a fenda.
Suportaram o barulho de construção dia e noite durante a fase inicial do projeto. Afinal, havia pressa, já que a obra deveria estar pronta a tempo da Copa de 2014.
“Eu passei muito tempo sem dormir, por causa dos mosquitos que vinham do canteiro de obras e do barulho”, diz uma moradora que prefere não se identificar, mas mostra pontos de infiltração deixados em sua parede por causa das rachaduras no prédio geradas pela obra.
“Foi um momento de muito sacrifício para todos nós. Espero que essa obra acabe um dia, senão será prejuízo demais”, considera.