Disputa entre ministros deixa STF em ‘situação dramática’, afirma ex-presidente da Corte

Sydney Sanches
AGÊNCIA BRASIL
Sem citar nomes, Sanches crítica duramente o fato de alguns ministros não estarem aplicando o entendimento da maioria de autorizar a prisão antecipada


Quando Sydney Sanches presidia o Supremo Tribunal Federal (STF) em 1992, o país não vivia momentos tranquilos. Era época do impeachment do ex-presidente Fernando Collor e ele teve, inclusive, que lidar com falsas ameaças de bomba na Corte durante aquele processo.

Ainda assim, nos 19 anos que esteve no STF, de 1984 (último ano da Ditadura Militar) a 2003 (primeiro ano do governo Lula), Sanches conta que nunca vivenciou momento parecido com o que se passa hoje na Corte, com conflitos explícitos entre os ministros. À BBC News Brasil, ele disse estar “perplexo” e “surpreso” com os últimos acontecimentos e considerou as ofensas pessoais trocadas em julgamentos uma “mácula na história do Supremo”.

O principal motivo de tensão hoje, diz ele, é a disputa em torno da possibilidade de prisão em segunda instância, ou seja, antes do trânsito em julgado, quando se encerram todos os recursos possíveis.

O cumprimento antecipado da pena foi permitido com placar apertado de 6 a 5 em fevereiro de 2016, no julgamento de um habeas corpus com repercussão geral (válido para todos os processos do país). Depois, a decisão foi confirmada em uma liminar (provisória), dentro de uma ação direta de constitucionalidade (ADC) que tentava reverter a primeira decisão. Acontece que, no ano seguinte, o ministro Gilmar Mendes mudou de ideia e parte dos que ficaram derrotados nos primeiros julgamentos – Marco Aurélio, Rosa Weber, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Celso de Melo – passou a cobrar o julgamento definitivo da ADC para que a prisão após segunda instância volte a ser proibida.

Sem citar nomes, Sanches critica duramente o fato de alguns ministros não estarem aplicando o entendimento da maioria de autorizar a prisão antecipada. Ele defende a decisão da presidente Cármen Lúcia de não trazer novamente a ação para análise dos onze ministros. Na sua visão, a Corte não deve reavaliar em tão pouco tempo uma questão constitucional, que já foi decidida com repercussão geral.

“Eu nunca vi uma manipulação tão alta para se rediscutir matéria”, respondeu, ao ser questionado sobre a crítica de Marco Aurélio de que a presidente manipula a pauta.

Supremo Tribunal FederalRMNUNES
“Eu nunca vi uma manipulação tão alta para se rediscutir matéria”, disse ao ser questionado sobre a crítica de Marco Aurélio de que a presidente do STF manipula a pauta

O ex-presidente do STF atribui a pressão sobre a ministra ao caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, detido há mais de 80 dias em Curitiba devido à condenação no caso Tríplex do Guarujá – enquanto juristas contrários à prisão em segunda instância dizem que não se trata apenas do petista, mas de respeitar a presunção de inocência de todos os réus.

“Será que está certo pressionar para conseguir colocar em pauta uma matéria que já foi decidida só porque isso vai beneficiar uma certa pessoa? É dramática a situação”, afirma Sanches.

A defesa de Lula – que hoje lidera as intenções de voto para a eleição presidencial, mas provavelmente será barrado da disputa pela Lei da Ficha Limpa – apresentou novo recurso contra sua condenação em junho. O relator do caso, ministro Edson Fachin, remeteu o pedido para análise do plenário, mas os advogados do petista ainda tentam manter o julgamento na Segunda Turma, colegiado que, via de regra, aprecia questões penais, e no qual as chances de libertação parecem maiores.

Para Sanches, Fachin está certo e age em “defesa da decisão do plenário” de permitir a prisão de Lula em abril. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

BBC News Brasil – O Supremo Tribunal Federal passa por uma crise?

Sydney Sanches – Eu acho que sim. A turma não está cumprindo decisão do plenário (de autorizar a prisão após condenação em segunda instância) e quer que o plenário rediscuta uma questão que já foi discutida em 2016. E a presidente (Cármen Lúcia), por isso, não quer colocar em pauta a matéria. Os que ficaram vencidos naquela ocasião não se conformam com isso. De que adianta remeter a questão para o plenário se depois a turma não segue? E quem garante que vai seguir agora (caso haja revisão da jurisprudência), dependendo da nova decisão que se proferir?

BBC News Brasil – Como avalia a atuação da presidente?

Sanches – Eu acho que a presidente está certa. Para mim, a motivação, a meu ver, é outra. Evidentemente, há uma pessoa (Lula) que não se quer que continue presa, ainda que não possa ser candidata. E aí, a forma de conseguir isso, já que no habeas corpus (de Lula julgado em abril) não se concedeu (a liberdade) por que era exame de caso concreto, é julgar de novo a tese (constitucional sobre prisão após segunda instância).

Quando se tratar de exame de tese, a promessa da ministra Rosa Weber é voltar à posição que ela assumiu no plenário anteriormente (contra a prisão antecipada). Já com os outros (cinco) votos no mesmo sentido, então vai prevalecer exatamente a posição contrária (à prisão após segunda instância).

Então, a presidente pensa nisso: será que está certo pressionar para conseguir colocar em pauta uma matéria que já foi decidida só porque isso vai beneficiar uma certa pessoa? É dramática a situação. De qualquer maneira, mesmo que seja examinada novamente a questão e concedida a liberdade ao presidente (Lula), ele não pode ser candidato, por causa da Lei da Ficha Limpa. Essa confusão tem a ver com isso. Parece que está criando uma situação que todo dia um deles fala alguma coisa contra a presidente.

BBC News Brasil – Em crítica à presidente, o ministro Marco Aurélio disse que nunca viu uma manipulação tão grande da pauta do Supremo.

Sanches – Mas eu também nunca vi uma manipulação tão alta para se rediscutir a matéria que se discutiu anteriormente por decisão de seis a cinco. Também nunca vi.

BBC News Brasil – O senhor não acha que ela está manipulando a pauta?

Sanches – Em matéria de constitucionalidade, uma vez decidida a questão não se volta a discutir mais. Aí fica difícil, porque se Corte Constitucional ficar mudando, qual a segurança jurídica que faz para o país?

O fato é que a presidente está superando isso tudo, pensando o seguinte: que impressão vai causar à opinião pública se o Supremo mudar essa orientação e em seguida conceder o habeas corpus que até agora tem sido negado? Uma repercussão terrível. Agora, essa crise foi criada dentro do próprio Supremo, não foi coisa externa, o que é pior.

BBC News Brasil – Alguns juristas criticam essa percepção. Eles dizem que os ministros não deveriam ser guiar pela opinião pública.

Sanches – Mas a repercussão (negativa) seria se o Supremo mudasse a orientação que vinha sustentando até agora e logo em seguida concedesse o habeas corpus a quem eu me referi (Lula). E aí parecia um casuísmo. Isso que a presidente está querendo evitar, mas não vai conseguir por muito tempo porque o ministro Toffoli assume a presidência (em setembro) e já tem posição bem definida no sentido de que a prisão não pode ocorrer com a condenação em segunda instância.

Sydney SanchesDireito de imagemAGÊNCIA BRASIL
Image captionPara ex-ministro, ofensas pessoais trocadas em julgamentos são uma “mácula na história do Supremo”

Fica parecendo que é teimosia da presidente, mas eu me coloco no lugar dela e vejo: por que expor a Corte a tudo isso se já tem uma decisão da Corte com eficácia perante todos e tomada há dois anos? Não é uma decisão muito antiga. Se houver algum abuso, alguma injustiça flagrante, cabe liminar para dar efeito suspensivo ao recurso especial ou extraordinário, mas para isso não se precisa alterar a tese do plenário.

Agora, vem o problema da pressão das eleições. Se a pessoa solta não pode ser candidato, então a pressão vai ser para que seja suspensa a condenação, e não mais a prisão. Suspensos os efeitos da condenação (como pede a defesa de Lula agora), ele vai passar a ser ficha limpa. Então fica tudo parecendo casuísmo. E isso é péssimo para o tribunal porque fica parecendo que ele está manobrando conforme a conveniência do momento, e não (julgando) segundo a convicção jurídica.

BBC News Brasil – Os ministros contrários à prisão após condenação em segunda instância argumentam que as ações que tratam dessa questão foram julgadas apenas provisoriamente (em liminar). Não seria necessário julgá-las em definitivo para encerrar essa questão?

Sanches – Quais que não foram julgadas?

BBC News Brasil – As ações diretas de constitucionalidade (ADCs) em que houve decisão liminar permitindo a prisão após segunda instância.

Sanches – Não, a ADC é a que o ministro Marco Aurélio quer incluir em pauta para discutir a mesma matéria que foi discutida no recurso extraordinário (habeas corpus) com repercussão geral. E aí ele pede preferência para essas ações e a presidente diz: “não, não vejo preferência”.

Se a posição do plenário do Supremo já é no sentido X e não no sentido Y, ela está dizendo: “não me parece urgente (apreciar) aquilo que já tem uma posição firmada no plenário do Supremo Tribunal Federal e tem eficácia erga omnes, isto é, perante todos”.

BBC News Brasil – O senhor destacou que, embora esteja permitida a prisão após a segunda instância, se houver alguma flagrante ilegalidade no processo o réu pode recorrer para suspender a prisão. É o que Lula está tentando.

Sanches – Isso sim, ele já está tentando uma liminar com efeito suspensivo no recurso extraordinário. Mas no fundo é a mesma coisa. Se der a liminar, o efeito será o mesmo (que o efeito que teria o habeas corpus negado em abril, evitar sua prisão). Vai suspender o que? Só a pena? Ou a própria execução da sentença condenatória? Se a decisão se estender à sentença condenatória, então a ficha suja torna-se ficha limpa e o ex-presidente pode concorrer. Tudo isso está sendo levado em consideração (pelos ministros), alguns por motivos pessoais, outros porque acham que não há nada a alterar.

BBC News Brasil – Também está gerando polêmica a decisão do ministro Edson Fachin de remeter novamente o recurso de Lula a plenário.

Sanches – Parece que é o recurso que foi impetrado para dar efeito suspensivo (à condenação do TRF-4) e suspender a execução da pena. Essa tese em caso concreto já foi decidida em seis a cinco (no julgamento do habeas corpus em abril), mesmo com voto da Rosa Weber, porque ela disse que, como se trata de caso concreto, aplico orientação do plenário. O que ela está fazendo é cumprir o que o juiz deve fazer. Se não é para seguir a decisão do plenário, não precisa ter plenário.

BBC News Brasil – Mas o caso do Lula a princípio deveria ser julgado na turma. Para alguns juristas, a decisão de Fachin é uma perseguição a Lula, um tratamento diferenciado.

Sanches – É que ele (Fachin) sabe que agora vai ser deixada de ser aplicada (na turma) a decisão do plenário, e ele quer saber se o plenário vai mudar ou não vai mudar (sua decisão no habeas corpus de Lula). Eu acho que é isso. Ele faz o que tem que fazer. Como relator (do caso de Lula), ele protege a decisão plenária.

LulaDireito de imagemAFP
Image captionPara Sanches, Fachin está certo e age em “defesa da decisão do plenário” de permitir a prisão de Lula em abril

A imagem que está ficando é de crise interna. A repercussão é ruim, porque se o Supremo não for confiável, o que vai ser do Judiciário? Historicamente ele sempre foi o baluarte dos direitos. Agora, também é composto por seres humanos, então também entendo a reação daqueles que não se conformam de terem perdido.

BBC News Brasil – O Supremo é o guardião da Constituição. Para alguns juristas, porém, os ministros têm feito justamente o contrário, estão flexibilizando a Constituição, por exemplo, quando acabaram com o foro privilegiado de parlamentares ou quando permitiram a prisão antes do trânsito em julgado. Como o senhor vê isso?

Sanches – Quando a Constituição criou o foro privilegiado eu acho que (o constituinte) imaginava que um parlamentar de vez em quando podia ter um processo no Supremo Tribunal Federal. Mas aí você verifica que todo dia entra um processo contra um parlamentar. Então, o tribunal entendeu no sentido de interpretar mais restritivamente: “bom, se a Constituição quer proteger o exercício do mandato, o foro é só para crimes que tenham sido praticados no exercício do mandato e em função do mandato”. Foi o que o Supremo fez, a meu ver, acertadamente.

BBC News Brasil – A Constituição estabelece que uma pessoa só é culpada após o trânsito em julgado. O Supremo não está flexibilizando a letra da Constituição?

Sanches – Mas acontece que não se pode interpretar só a letra da lei, tem que interpretar o sistema da lei. O sistema criou juízes de primeira instância e tribunais criminais de segunda instância. Se eles não tiverem eficácia, se as decisões não puderem ser cumpridas, para que que eles existem? Então por que todas as causas não vão diretamente ao Supremo, o que seria um absurdo? São os juízes de primeira e segunda instância que julgam as provas, que veem as testemunhas, os réus. Eles que avaliam as perícias. Nos recursos especiais e extraordinários (às cortes superiores) não cabe revisão das provas, só discutir se o direito foi corretamente aplicado.

BBC News Brasil – Alguns ministros claramente viraram inimigos e até brigam em plenário. Eles têm que sentar e conversar?

Sanches – Olha, no tempo em que eu militei no Supremo, durante 19 anos, de 1984 a 2003, eu nunca presenciei nada do que está acontecendo atualmente. O que havia eram discussões, às vezes acaloradas, mas nunca com ofensas pessoais, como agora. Então, esse clima está criando uma situação que eu acho penosa para o Supremo. Na história do Supremo, isso é uma mácula. O Judiciário não existe para isso, existe para decidir quem tem razão e quem não tem.

Agora, o colegiado julga para que a maioria decida. Se a maioria amanhã decidir reconsiderar aquela decisão (da prisão após segunda instância), tudo bem, mas cumpra-se a decisão. O que não pode é aquela turma que perdeu dizer “eu não cumpro porque eu não gostei’. Isso é que não poder fazer.

BBC News Brasil – Como essa crise poderia ser superada?

Sanches – Eu não sei, porque isso aí é questão de bom senso. Nenhum deles é dono do Supremo, nem é dono do cargo. Estão lá pagos pelo povo para decidir de acordo com sua convicção jurídica, imparcial, e nada mais. Eu estou surpreso e perplexo com o que está acontecendo.

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