Aos 85 anos, Marcia Vinci mostra que nunca é tarde para tirar os poemas da gaveta

Marcia Vinci escreve poesia desde menina, mas só resolveu publicar no ano passado. O tempo ajudou a maturar os versos sem roubar-lhes o frescor e a originalidade

Retrato da poetisa Marcia Vindi para a revista Epoca. (Foto: Gabriel Rinaldi)
Por RUAN DE SOUSA GABRIEL

Quando era menina, Marcia Vinci costumava passar as férias na casa de sua tia Quita, em São João da Boa Vista, no interior de São Paulo. Quita era costureira, preparava enxovais e aproveitava a mão de obra das sobrinhas. Marcia e sua irmã mais nova passavam as férias a alinhavar os lençóis de linho que, mais tarde, a tia costurava. As radionovelas da Rádio Nacional distraíam as meninas do tédio do trabalho. “Aquilo era uma tortura!”, recorda Marcia, nascida em Poços de Caldas, no sul de Minas, em 1o de janeiro de 1933. Ela conversou com ÉPOCA em seu aconchegante apartamento na Zona Oeste de São Paulo.

Quando caía a noite, tia Quita abandonava as linhas e agulhas, reunia as sobrinhas e seguia para a igreja. “A vida dessa minha tia oscilava entre dois polos: a costura e a religião”, afirma. “Ela ficava horas na igreja, os olhos revirados em êxtase religioso. Eu e minha irmã aproveitávamos para fugir e paquerar os meninos na praça.” As memórias das férias em São João da Boa Vista foram costuradas num poema intitulado “Quita”: Tempo que não fluía/entre a novena/e o bordado/tinha um boudoir/de dama recatada/com leve quê/de puta disfarçada. “Essa minha tia se confessava toda semana. Não comungava sem se confessar”, conta. “Eu ficava imaginando os pecados que ela escondia para ter de se confessar tanto assim.” Marcia fala de costas para uma parede branca decorada com retratos antigos da família.

Ela gosta de costurar poemas. Alinhava as palavras uma a uma e corta as sobras até o arremate final. “O alinhavo é o sustento da costura. Se você não alinhava antes, a costura fica torta”, diz. “Um poema também precisa ser alinhavado até ganhar forma. Para mim, o fio  que costura o poema é o tempo. O tempo é o alinhavo que dá sustento à poesia.” Marcia começou a fazer versos ainda menina, deslumbrada com a recém-aprendida capacidade de juntar as letras. Compôs poemas a vida toda, mas os guardava numa gaveta. Lá, eles permaneceram até o final do ano passado, quando foram reunidos no livro Poemas do sim e do não, publicado pela paraLeLo13S, a pequena editora de uma livraria de Salvador, a Boto-Cor-de-Rosa. Uma estreia literária aos 84 anos.

Os Poemas do sim e do não agradaram aos leitores exigentes. “Marcia tem uma liguagem seca, irônica, concisa e feminista, que tem muito a ver com a nova poesia produzida pelas mulheres”, diz a escritora Noemi Jaffe. “Seus temas não são grandiloquentes, mas cotidianos. A maiora dos poetas da idade dela ainda escreve aquelas coisas esparramadas, parnasianas. Ela, não.” Marcia, aliás, faz troça do parnasianismo de Olavo Bilac. Um dos sonetos mais famosos de Bilac afirma que “Só quem ama pode ter ouvido/Capaz de ouvir e de entender estrelas”. Marcia, insolente, lembra que “Estrelas morreram/Há trilhões de anos” e o que vemos lá no alto são “Astros defuntos/cemitério espacial/um passado de luz”. A poeta Bruna Beber também se impressionou com o “frescor maduro” dos versos de Marcia. “A poesia de Marcia é cheia de mistérios. Ela canta, sabe e gosta de cantar, mas não canta alto, talvez porque tenha se dado tempo para afinar seu canto”, diz. “Márcia compõe a poesia de uma mulher que vive cultural e plenamente seu tempo.”

“Vinci tem uma linguagem seca e feminista que tem muito a ver com
a nova poesia produzida pelas mulheres”
NOEMI JAFFE, ESCRITORA

O fio condutor de Poemas do sim e do não é o tempo. Os poemas são sintéticos, mas dão conta da vida toda de uma mulher: da infância à maternidade, do deslumbramento com a cidade grande às reflexões sobre a morte. O livro é dividido em quatro partes e a ordem dos poemas é quase cronológica. A primeira parte do livro, “Os idos”, é composta por poemas que passaram muito tempo trancafiados na gaveta e careciam de alguns reparos, como o corte de adjetivos e advérbios e depuração vocabular. Nos versos, surgem as memórias de infância, as ladeiras de Poços de Caldas e os parentes mortos, como tia Quita. “Nasci em boca/de vulcão/entre/o suor da pedra/e o frescor da montanha”, diz um dos poemas, em referência à geografia poços-caldense.

COSTURA DO TEMPO O “belo caderno” no qual Marcia Vinci passa a limpo seus poemas. Ela começou a compor versos ainda menina (Foto: Gabriel Rinaldi)
COSTURA DO TEMPO O “belo caderno” no qual Marcia Vinci passa a limpo seus poemas. Ela começou a compor versos ainda menina (Foto: Gabriel Rinaldi)
COSTURA DO TEMPO O “belo caderno” no qual Marcia Vinci passa a limpo seus poemas. Ela começou a compor versos ainda menina (Foto: Gabriel Rinaldi)

Nesses versos mais antigos, já aparece um olhar agudo e um pouco subversivo sobre o mundo feminino. Num dos poemas, um anjo torto acompanha uma procissão. Noutro, o eu lírico roga que o boi da cara preta deixe dormir “As putas meninas/de tuas esquinas”. “Os idos” termina com um poema intitulado “Mênstruo”: Sangue/primeiro/pano/ manchado/beijo/primeiro/o namorado/primeiro baile/cintura fina/saia rodada. A tinta feminista também se esparrama pela segunda seção do livro, “Maturar”, que começa com versos sobre uma mulher que, desperta de um longo sono, abandona a vassoura, queima a casa e cai na vida, possuída por um arco-íris de cores loucas.

A terceira parte, “Paisagem urbana”, retrata o assombro da poeta poços-caldense diante do caos paulistano. Alguns poemas, de inspiração concretista, parecem colagens da poluição visual da metrópole: pichações, lambe-lambes, anúncios colados em postes, os rios mortos. Marcia se mudou para São Paulo em 1951 para estudar letras na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), localizada na histórica Rua Maria Antônia, no centro. “Eu lembro de como ficava impressionada quando, à tarde, saía da Casa Bancária Moreira Salles, na Rua Direita, onde eu trabalhava, e dava com a Praça da Sé cheia de gente!”, diz. “Havia aqueles homens-sanduíches, com placas de propaganda penduradas no corpo. Um dia, eu até segui um deles.” A última parte de Poemas do sim e do não, “O fio e o alinhavo”, dá um arremate formal a toda essa experiência feminina e urbana. Os últimos poemas são os mais concisos. Neles, percebe-se o trabalho diligente da poeta em busca da palavra exata e os jogos de linguagem com os múltiplos sentidos de vocábulos ligados ao mundo da costura, como “fio” e “linha”.

O FIO E O ALINHAVO A capa de Poemas do sim e do não (paraLeLo13S, 104 páginas, R$ 35), de Marcia Vinci. (Foto: Época)

Quando começou a cogitar a publicação de seus versos, Marcia confidenciou a Bruna Beber que mantinha poemas trancafiados numa gaveta há décadas. Pediu que ela os lesse e desse sua opinião sincera. “Marcia já sabia o que estava fazendo, só queria uma ajuda para tirar gorduras, e eu imediatamente virei sua leitora. Fiquei muito entusiasmada com a vontade dela de estrear na poesia aos 84 anos”, diz Beber. A artista visual Laura Vinci, filha de Marcia, sugeriu indicar os poemas da mãe à editora paraLeLo13S. Quem enviou o e-mail de apresentação da poeta tardia foi o músico e ensaísta José Miguel Wisnik, o genro. “Marcia me mostrou poemas seus já faz tempo. Não os leio com nenhuma condescendência familiar, mas com a ótima surpresa de ver que se trata daquele tipo de poesia que respira a verdade de quem a faz, mantendo uma relação fina e forte com as palavras”, afirma Wisnik. Os versos foram bem recebidos em Salvador. “Fomos surpreendidas por uma obra coesa e madura. O livro chegou já muito bem pensado, com uma boa proposta de ordem e disposição dos poemas”, diz Milena Britto, uma das editoras da paraLeLo13S. “Havia uma poeta inquieta, curiosa, contestadora e rebelde ali.”

“Fomos supreendidas por uma obra coesa e madura. Havia uma poeta inquieta, curiosa, contestadora e rebelde ali”

MILENA BRITTO, EDITORA DA PARALELO13S

Um dos primeiros leitores de Marcia foi Antonio Candido (1918-2017), o maior crítico literário brasileiro. Marcia conheceu Candido nos anos 1950, na Livraria Duas Cidades, no centro de São Paulo. Candido também era de Poços de Caldas e uma das tias de Marcia trabalhara com o pai dele, um médico reumatologista que remodelou os serviços termais da cidade. Candido era um admirador confesso do pai de Marcia, Atílio Vinci, zagueiro da Associação Atlética Caldense, o time de Poços de Caldas. “Candido dizia que não podia avaliar os poemas de Marcia com distância, mas seu vínculo afetivo com Poços de Caldas o fez lê-los com interesse, sem abrir mão das exigências e dos critérios críticos. Com atenção admirável, ele destacou os pontos fortes e fracos”, diz Wisnik. “A leitura dele é certamente um privilégio que ela soube assimilar muito bem, ao trabalhar no livro, sem ansiedade nem pressa, até sua forma atual.”

ROCA DE FIAR
o fio
sai do umbigo
tece
o tricô
e o poema
enquanto espera
o mênstruo
o sêmen
o parto
a data
a carta
o pão
na boca
do forno
– farás tudo
o que o mestre
mandar?
– com muito gosto
Marcia Vinci

Marcia não tem pressa nem rotina para compor seus versos. “É inspiração mesmo”, diz. “É uma palavra, uma ideia, um ritmo que surge, qualquer coisa que vejo na rua. Eu tomo nota e depois vou trabalhando sem muita ordem, até que o poema se forme.” Esse é o método que Marcia seguiu a vida toda: acompanhar o fio do poema, alinhavar até encontrar uma forma sólida, cortar os excessos e costurar palavra por palavra. Quando termina de arrematar os versos, passa-os a limpo num “belo caderno”, como ela diz, que traz seu nome na capa. Marcia jura que não vai mais guardar poema nenhum na gaveta.

Época

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