A mulher que influenciou a arte de Villa-Lobos

Lucília Guimarães foi influência decisiva na formação musical do autor das Bachianas brasileiras. Um divórcio traumático a relegou ao ostracismo

IMG_2655

Por MARCELO BORTOLOTI

Durante uma viagem à Europa, em 1936, o músico Heitor Villa-­Lobos surpreendeu sua mulher com uma carta em que pedia o divórcio. Estavam casados havia 22 anos. Ele avisava que não voltaria ao lar, nem mesmo para pegar suas coisas ou ter uma conversa pessoal. Os motivos alegados eram vagos, mas um deles o maestro considerava infame: “Deixar pairar no espírito de muita gente mal informada do meu verdadeiro valor artístico, não só técnico como cultural e moral” a insinuação de que “tudo que sei e que sou devo a si unicamente”. A razão da separação era outra – chamava-se Arminda, sua secretária, loira e 25 anos mais jovem, com quem ele tinha um caso extraconjugal. Mas a carta expunha um incômodo real para um artista orgulhoso da própria obra como Villa-Lobos.

Sua primeira companheira, Lucília Guimarães Villa-Lobos, era uma pianista virtuosa, formada no Instituto Nacional de Música, aluna de um discípulo de Chopin e profunda conhecedora do instrumento. Quando se casaram, em 1913, Villa-Lobos mal tocava piano – seus instrumentos eram o violão e violoncelo. Ele nunca viria a ter uma formação musical clássica. Apesar disso, além de música de orquestra, é autor de uma centena de composições para piano, obra que pela inventividade é considerada uma das mais importantes do século XX – logo nos primeiros trabalhos exibe, segundo os críticos, um profundo conhecimento das minúcias e dos segredos do instrumento. Nessas circunstâncias, os detratores de Villa-Lobos não tardaram a sugerir que o mérito dessa genialidade devia-se à mulher.

A conturbada separação atirou Lucília no ostracismo. Dois anos depois, Villa-Lobos já vivia com Arminda e dedicou a ela mais de 50 composições, incluindo a série das Bachianas brasileiras, sua obra mais conhecida. Para a primeira mulher dedicara apenas duas. Depois da separação, o compositor ganhou grande projeção no Brasil e no exterior. Lucília foi a companheira dos anos difíceis, apresentou obras do marido em vários concertos, inclusive na Semana de Arte de 1922, quando as músicas dele eram vaiadas e consideradas incompreensíveis pela crítica tradicional. Arminda pegou os anos de glória e assumiu a posição de mulher oficial em altas-rodas regadas a champanhe. Envergonhada por ter sido substituída, Lucília mudou-se para o interior. Foi ser professora de crianças e morreu sozinha em Paraíba do Sul, no interior fluminense, sua terra natal. Não aceitou o divórcio, preservando o sobrenome do marido até o fim da vida.

Depois de sua morte, os parentes reivindicaram o reconhecimento do papel dela na carreira do maestro. O irmão da pianista, Luiz Guimarães, escreveu que os primeiros trabalhos para piano solo de Villa-Lobos eram criações conjuntas com Lucília. E que duas obras dessa época foram de “inteira autoria” dela. Ele não diz quais são. Era uma visão contaminada pelo rancor em relação ao destino da irmã. No entanto, a musicista Lisa Peppercorn, amiga do maestro, escreveu que Villa-Lobos tinha dificuldades em transcrever suas ideias para os instrumentos e Lucília o ajudava, tocando piano. Recentemente, a pesquisadora americana Mary Lombardi, em trabalho sobre Lucília, afirmou que “creditar somente a ele a autoria de suas composições para piano é um exagero”.

 

Villa-Lobos era um gênio autodidata, com muita facilidade para assimilar a teoria musical. Sua obra é uma das mais importantes do século XX em nível internacional e seria também exagero dizer que ele se escorou no talento da mulher. Mas a questão nunca foi esclarecida por certas circunstâncias, entre elas a própria personalidade do compositor, um homem vaidoso. Quando voltou de Paris, em 1924, Manuel Bandeira escreveu: “Quem chega de Paris espera-se que venha cheio de Paris. Entretanto, Villa-Lobos chegou de lá cheio de Villa-Lobos”. Para criar um clima de mistério em torno de si, inventava mitos que se tornaram um tormento para seus biógrafos. Nunca esclareceu sua data de nascimento, só descoberta pelo biógrafo Vasco Mariz. Dizia ter estudado no Instituto Nacional de Música – mas nunca foi matriculado na instituição – e ter excursionado pelo interior do Brasil para coletar ritmos regionais típicos que inspiraram sua obra, o que também não aconteceu. Mudou a data de composições para anos bem anteriores àqueles em que as obras foram escritas, para causar a impressão de ter sido pioneiro em determinada linguagem. Esse tipo de sombra estendeu-se também à presença de Lucília nos primeiros anos.

Havia ainda um segundo motivo de controvérsia. Depois da morte do compositor, Arminda ajudou a criar o Museu Villa-­Lobos e tornou-se uma incansável propagadora da obra do marido. Mas manteve um espírito de rivalidade com a primeira mulher, que não aceitou lhe ceder o sobrenome nem a parte de direitos autorais que lhe cabia no testamento. “Arminda procurou deletar tudo o que fosse referente a Lucília na trajetória do compositor”, diz Zelito Viana, diretor do filme Villa-Lobos, uma vida de paixão. De fato, é possível encontrar na internet cronologias do músico que nem sequer mencionam que ele era casado antes de conhecer Arminda.

Biógrafos e estudiosos concordam que a primeira mulher foi muito importante na obra de Villa-Lobos. A dificuldade é qualificar a natureza de sua contribuição. Ela não está evidente nas partituras. Para esclarecer isso, ÉPOCA mergulhou nos manuscritos do Museu Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, e consultou mais de uma centena de composições dos anos 1910 e 1920 em busca da presença da caligrafia de Lucília. Existem partituras originais de diversos gêneros e períodos. Boa parte delas foi doada pela própria família da pianista. Praticamente a totalidade tem grafia de Villa-Lobos. Uma exceção é o original de Epigramas irônicos e sentimentais, composição sobre poesia de Ronald de Carvalho, com anotações com letra semelhante à de Lucília. Foi ela quem apresentou pela primeira vez a peça, no Rio de Janeiro, em 1921. O manuscrito, no entanto, não é prova de que Lucília esteve ao lado de Villa-Lobos escrevendo a quatro mãos suas primeiras obras.

A participação da mulher parece ter sido mais sutil. Uma cena que soa plausível é a do maestro sentado ao lado do piano e transmitindo suas ideias a Lucília, que as testava no instrumento. O pianista e pesquisador Luis Gustavo Torres acredita que essa troca levou a uma influência decisiva da mulher em algumas composições. Ele dedicou seu mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro a estudar a obra Ondulando, de 1914, um ano depois do casamento com Lucília. Essa composição tem uma pronunciada influência do romantismo europeu, atípica na escrita de Villa-Lobos, mas familiar para a mulher, estudiosa de Schumann e Chopin. “A obra parece ter sido feita por alguém que conhecia bem esse tipo de linguagem pianística”, diz Luis Gustavo. Ao demonstrar as possibilidades do piano para o então aprendiz Villa-Lobos, ela pode ter indicado um caminho para a peça que ganhou feição mais alemã que brasileira.

Outra composição atípica de Villa-­Lobos, que parece ter a mão de alguém que conhece bem o piano, é Trio nº 2, de 1915. O segundo movimento, batizado de “Berceuse”, tem influência francesa e um refinamento que o torna muito difícil de executar. “Não tem o carimbo de Villa-Lobos e parece ter sido pensado por alguém que toca muito bem o piano”, diz o pesquisador e produtor musical André Jorge de Oliveira. Como o maestro àquela altura não dominava o instrumento, também aqui o auxílio da mulher soa mais evidente. Os documentos do museu revelam que Villa-Lobos teve ajuda de pianistas profissionais para revisar algumas de suas primeiras composições e deu crédito a eles. É o caso de J. Otaviano em Valsa mística, de 1918, e Lisa Pepercorn em A folia de um bloco infantil, de 1920. Segundo Mary Lombardi, Villa-­Lobos às vezes escrevia acordes que um pianista não conseguiria tocar mesmo usando todos os dedos das duas mãos. Por isso, algumas obras tinham de ser revisadas para se tornar executáveis. Esse é um tipo de trabalho que certamente Lucília fez, embora não tenha recebido crédito por isso.

O musicólogo Manoel Corrêa do Lago diz que Villa-Lobos não conhecia bem o piano antes de se casar com Lucília, e seu domínio aumentou radicalmente entre 1912 e 1918. De acordo com ele, o fato de ter em casa um piano e uma grande intérprete que entendia seu projeto musical permitiu a ele testar mais o instrumento em sua companhia. “Lucília é um personagem que precisa ser valorizado, mas não pelos motivos maledicentes. Jamais interferiu na escrita musical de Villa-­Lobos, mas teve influência enorme em sua compreensão do piano”, diz Lago.

Lucília foi a primeira intérprete de dezenas de composições do maestro. Esteve ao lado dele no projeto do Canto Orfeônico, de educação musical nas escolas, embora seu nome seja pouco lembrado por esse trabalho. E viveu uma tragédia afetiva. “Ela dizia que trabalhava muito fora, um dia teve de voltar para casa por algum motivo e flagrou Villa-Lobos e a secretária na cama dela. Ficou arrasada, porque não queria se separar”, diz Zélia Barros Pinto, de 78 anos, que morou com ela em Paraíba do Sul. Deixou uma centena de composições, a maioria para canto coral, embora sem a genialidade de Villa-Lobos. Por essa produção mereceria ter seu nome na história da música brasileira. Acabou, no entanto, ofuscada pelo ex-­marido, de cuja sombra nunca conseguiu se distinguir.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *