Zama, entre ‘Cem Anos de Solidão’ e a ‘A náusea’ de Sartre

Chega ao Brasil o novo filme da diretora argentina Lucrecia Martel, um tratado sobre a inanição existencial

Por Jatabê Medeiros

Dolorosa alegoria da relação entre colonizadores e colonizados, o filme argentino Zama estreia no Brasil no dia 29 com uma evocação de grandes aventuras do cinema e da literatura. Há um tanto de Cem Anos de Solidão e do Quixote.

Outro tanto de Aguirre, a Cólera dos Deuses. Algumas cenas podem lembrar Fitzcarraldo. Tem até certo sabor de O Incrível Exército de Brancaleone. Mas a indiferença e a apatia do personagem principal, Diego de Zama, puxado de um romance do escritor argentino Antonio di Benedetto, de 1956, parecem mais conectadas a “A náusea” de Jean-Paul Sartre.

Vida em suspenso em um território de vidas em suspenso, a existência de Diego de Zama é o veículo ideal para o quarto filme da provocadora e rebelde cineasta argentina Lucrecia Martel, diretora dos premiados O Pântano (2001), A Menina Santa (2004) e A Mulher Sem Cabeça (2008). Zama acaba de ganhar o grande prêmio da 30ª edição do festival Cinélatino de Toulouse (sul da França) e foi aclamado no Festival de Veneza.

Longe de ser uma artista moralista, Lucrecia não lança um olhar sociológico ou histórico específico sobre a América do Sul colonial e a saga de Zama. Sua opção é pelo existencialismo. Ela constrói cenas de fabulosa dramaticidade, insemina significados e trabalha nos interstícios dos diálogos, dos enfrentamentos. Di Benedetto examinava o que chamou de “inadequação do destino” na vida de seus personagens.

Ambientado na América Espanhola de 1790, possivelmente Assunção, narra a história de um magistrado da Coroa espanhola que, deslocado como autoridade para a terra nova, sonha em voltar para a vida de salamaleques e privilégios da metrópole. Mas o tempo passa e o rei nega sistematicamente os pedidos de regresso do corregedor.

Um tédio profundo acompanha sua aclimatação às regras brutas da terra que administra, a espera infrutífera tornando-se um abismo do qual o letrado Zama não faz questão de escapar. “Não posso retratar negros e índios com precisão. Eu tento. Mas os brancos, sim. Eu sou branca, conheço nossos pecados”, diz a diretora.

Protagonizado por Daniel Giménez Cacho (Zama), Lola Dueñas e um sempre espantoso Matheus Nachtergaele (o saqueador Vicuña Porto), o filme mostra, em meio às relações entre senhores, servos e escravos, a alienação filosófica, o exílio interior. Tudo com cenas de grande plasticidade, de um menino indígena murmurando numa canoa ou um cavalo que se volta para olhar para o personagem condenado.

Em São Paulo para promover o filme, Lucrecia Martel (que havia 9 anos não filmava) falou a CartaCapital. As pistas de sua autoconfiança e independência a precedem, são detectáveis de longe. Na sala de espera, um repórter de tevê reclamava que ela não gosta de falar à televisão.

“Ela acha que fazemos perguntas superficiais”, resmungou. Lucrecia não tem restrição a um veículo específico, mas é rigorosa em relação à linguagem. Considera, por exemplo, as séries de tevê como um retorno ao romance do século XIX.

“O que eu digo é que essas séries dependem demasiadamente do argumento. Têm estrutura mecânica e construções visuais e sonoras pouco interessantes. São coisas para crianças. Vi poucas, mas, do que vi, só me aborrecem, não é uma posição intelectual”, ela explica. Ao saber da controvérsia da recente série O Mecanismo, de José Padilha, a diretora é rápida em perguntar de volta: “Quem produziu?”

De posse da resposta, elabora sua postura. “Netflix é uma empresa que quer ganhar dinheiro. Não importa o que vai mostrar. É uma produção feita em um lugar que nunca nos favoreceu muito, historicamente, e que fala para uma maioria predominantemente classe média branca. Eles não pensam em Brasil, pensam só em dinheiro. Por isso, vendem essas facilidades intelectuais.”

Sobre a série de Padilha, ela não viu, portanto não comentou, mas disse o seguinte: “Também não me parece que Tropa de Elite seja uma produção que reflita de algum modo sobre o Brasil. Contém uma afirmação sobre a maldade que haveria acerca da favela, da brutalidade dos pobres. A pergunta é: por que esses diretores estão podendo fazer coisas com tanto dinheiro? Porque são parte do status quo, o dinheiro vem fácil para eles”.

Essa seleção de discursos é parte de uma estratégia de dominação na América Latina, analisa Lucrecia: a edição de livros, a produção de filmes, de séries de tevê, tudo passa pela legitimação de um pensamento. Essa contingência está presente em Zama.

A certa altura, o governador vai procurar um escrevente para redigir uma petição para Zama e encontra o rapaz imerso em manuscritos. Interroga-o, e este “confessa” que está escrevendo um livro. “Um livro! Quem escreveria um livro aqui?”, brada o governador, indignado.

A cineasta vê a indignação do governador como uma desestabilização de alguém poderoso que presencia um momento íntimo privado. “Trata–se de alguém fazendo algo por seu próprio interesse. Nem se trata ali de uma defesa da propriedade privada pelo governador, ele fica desestabilizado”, considera. “Por que o governo combate artistas como nós? Porque denunciamos o que funciona mal. Porque atores que não são os que o governo beneficia são incômodos.”

Em Zama, um menino numa liteira exalta as qualidades do poderoso corregedor que visita: o zelo pela Justiça, a coragem, a severidade. Parece ser uma metáfora da colonização cultural, a reprodução dos mitos do colonizador nos quais só as crianças acreditam.

“Esse menino pode ser ele mesmo, Zama”, a cineasta amplia o ângulo de visão. As falas são muitas e múltiplas, e quase todas enfatizam esse mal-estar do exílio involuntário, exceto uma.

“Faço por vocês o que ninguém fez por mim. Digo não às suas esperanças”, diz o espanhol Zama a seus captores cafuzos em uma das cenas finais. O espanhol estava quebrando ali uma regra do colonizador ao dizer a verdade, e, nesse sentido, a frase parece certamente uma intervenção externa no filme.

A mão da artista. De fato, a frase, assume Lucrecia, é um momento diferente daquilo ao qual ela está habituada. “Não sou muito de frases”, diz, rindo, para em seguida explicar do que se trata (em uma frase longa, passível de edição em um contexto de rotina, mas que pode perfeitamente escapar a seu destino).

“É de fato um pensamento contraditório com a ideia do colonizador. Se há algo que é comum a todas as culturas da nossa região é que sempre colocamos a esperança em algo. ‘Hoje estamos mal, mas vamos melhorar no futuro.’ É um pensamento muito branco: o tempo de suportar é mais o presente, e logo será permitido que se volte a comer, a poder dormir, a ter trabalho”, pondera.

“Mas, para os que não têm tudo isso, a esperança é um suicídio. Esse é o pensamento colonial, e é um raciocínio que não vai findar na América Latina. É o pensamento das classes dirigentes. A elite é que pode pensar no futuro, porque pode aguardar no presente. Mas, para os que estão em uma situação sem nenhum benefício, não se pode esperar pelo futuro. Não há esperança, o agora é que há. Quando não há como obter aquelas coisas através do trabalho, da saúde pública, da educação, a única forma de obtê-las é pela violência. Então, para mim, quando Zama diz essa frase, é porque é algo que somente a classe média branca, na América Latina, pode pensar. Essa linha do tempo não está em outros setores da sociedade. Quando se busca crer que a intervenção ataca o problema da violência, o que se está atacando é justamente a reação de quem não pode nem planificar o futuro. A classe média branca não deixa nada para o futuro que não seja ela mesma. A ideia de futuro é uma mentira com a qual se envenena permanentemente a sociedade. A luta de hoje para  comprar comida, um par de sapatos, um telefone, é minúscula ao lado da outra. A outra te rouba o tempo e as perspectivas. A postergação do presente em nome do futuro é violenta, pois o corpo vive no presente. Ninguém vive no futuro.”

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