Em defesa das ‘negas’

Antes mesmo da estreia, “Sexo e as negas”, seriado de Miguel Falabella inspirado no americano “Sex and the city”, foi alvo de protestos de movimentos negros. O cotidiano de quatro negras, moradoras de Cordovil, e suas relações amorosas despertaram a ira de entidades que lutam contra o racismo. A Secretaria Especial da Promoção da Igualdade Racial do governo federal chegou a receber várias denúncias de racismo por conta do programa.

Ivone Caetano, 69 anos, a única desembargadora negra do Tribunal de Justiça do Rio, tem fama de durona. E se diverte com as histórias da camareira Zulma, da cozinheira Soraia, da operária Tilde e da costureira Lia, todas criadas por Falabella.

Casada há 44 anos, mãe de dois filhos e avó de Cauã, de 10 anos, Ivone é filha de uma lavadeira que criou 12 filhos sozinha, depois de ser abandonada pelo marido. Nunca militou em movimentos negros, mas, sem citar nomes, critica negros famosos que agem como se não existisse racismo no Brasil. “Não somos uma democracia racial. A discussão sobre cotas nas universidades tornou o preconceito visível. E agora está quase irascível, agressivo.” Na parede do seu gabinete, no TJ, tem destaque um quadro que representa a Justiça, presente de um amigo. Só que no lugar da tradicional figura da mulher com os olhos vendados está uma negra com ouro no cabelo e nos olhos. “Quem me deu me conhece bem. Adoro este quadro.”

O que a senhora acha desta polêmica sobre “Sexo e as negas”?

Quem me chamou a atenção foi meu filho, Márcio, que não concordava com as críticas. Achei aquelas opiniões absurdas. Assisti aos dois episódios e não vi nada de racismo. A única coisa que poderia ser contestada é o título. Mas, mesmo assim, ninguém criou polêmica quando foi exibido “Sex and the city”, que também tinha mulheres, só que louras, falando de sexo. Sabe por quê? O estereótipo da negra é o da mulher estuprada pelo grande senhor, a mulher que tinha que abaixar a cabeça. Estamos em pleno século XXI. Por que só a mulher negra tem que ser a virgem, a pudica? A série valoriza a autonomia das mulheres sobre o seu corpo e a autoestima das negras. Não vi nenhum personagem se sentir inferiorizado por ser negro. E o que a gente mais vê, em pelo menos 70% da população negra, são mulheres sem autoestima, em conflito com seu tipo físico. São negras que querem copiar um biotipo que não é o delas. Que esticam o cabelo até quebrar. Eu sou o oposto. Eu me acho linda, adoro o meu cabelo crespo, a minha pele negra e o meu nariz chato. E não tive que abdicar disso para caminhar e chegar até onde eu cheguei. Eu e meus 11 irmãos temos este lema de vida: respeitar uns aos outros (e são poucos os negros que respeitam), valorizar o nosso tipo físico e ter autoestima. Eu não aceitei o massacre da sociedade por ser negra. Foi doloroso, mas cheguei aonde queria.

Por que a senhora acha que os movimentos negros se voltaram contra a série?

É uma questão de visão, de entender o que está sendo feito ali. Eu vejo a série de outro jeito, com a experiência de uma mulher de quase 70 anos que encarou o preconceito. Nunca baixei a minha cabeça. “Sexo e as negas” é divertida e não ofende o negro. Ela mostra a felicidade das personagens com seu biotipo de mulheres negras e com a autonomia de fazerem o que bem quiserem com o seu corpo. Quando aparece favela, tem sempre bandidos, crimes. Na série, não. Ela mostra pessoas normais com todos os problemas que qualquer família tem. Nós temos que canalizar nossos protestos para um lado mais sério.

A senhora nunca militou em movimentos negros?

Não dava tempo. Eu lutei o tempo inteiro, mas tinha o meu movimento particular. Tenho 11 irmãos. Para ajudar a minha mãe a colocar comida na mesa com dignidade, eu lutei muito. Fiz muito cabelo, muita unha, costurei. Tudo o que desse dinheiro com dignidade eu fazia. Faço parte daquele tipo de família marcada pela irresponsabilidade paternal. Quando eu tinha 12 anos (é a quarta filha de dona Josefa), meu pai foi embora. A grande dádiva que Deus me deu foi a minha mãe. Tudo o que eu fiz foi imitar a lavadeira.

Como a senhora encara o racismo?

Não sou conivente nem omissa. O racismo imperou neste país o tempo todo, escondendo a nossa importância na História. E, o que é pior, com muitos negros, famosos inclusive, compactuando com isso. Eu não gosto de ser chamada de macaca. Eu parabenizo o Aranha e o Daniel Alves, que reagiram. Quando você sofre preconceito, não pode ficar calado. Não precisa fazer rolezinho, mas tem que reagir. Às vezes basta um olhar. O que fazem neste país é vergonhoso. Se você reclamar e colocar o dedo na ferida, é chamada de problemática, exibicionista ou complexada. “Sexo e as negas” coloca o dedo na ferida: as protagonistas são negras, levam uma vida normal. Elas se preocupam com a beleza, e nenhuma delas estica o cabelo. E são mulheres com personalidade.

As atrizes de “Sexo e as nega”

fonte:blogancelmogois/GOIS DE PAPEL

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