“A GENTE PODE FAZER MUITA COISA PELO MUNDO AFORA”

Guinga e Esperanza Spalding falam do 1º show conjunto

Esperanza Spalding e Guinga durante sessão de fotos em São Paulo. Foto: André Seiti

Ela é uma das revelações do jazz norte-americano, professora da renomada escola de música de Berkeley. Ele, um dos compositores mais celebrados da música brasileira. Juntos, Esperanza Spalding e Guinga realizaram uma série de três shows em São Paulo [no Sesc Pinheiros entre os dias 17 e 19 de janeiro de 2014] em que passearam pelo repertório do violonista carioca e revisitaram standards norte-americanos.

Na voz dela e com ele ao violão, “Autumn in New York”, de Vernom Duke, abriu o espetáculo de sábado. O clássico do jazz foi seguido por um dueto na canção “Passarinhadeira”, com Esperanza dividindo as vozes, em português, com Guinga. E a apresentação correu entre duetos de vozes e instrumentos. Quando esta entrevista foi feita (na quinta-feira que antecedia o show), a dupla tinha sete músicas preparadas. No sábado, quase todas as canções tiveram a participação de ambos. Ao apresentar “Di Menor”, música de Guinga que Esperanza sabia tocar há mais tempo, ela pediu: “Tem algum baixista aí? Pode sair, por favor?”. Era uma brincadeira, como se não fosse dar conta do recado. Ao final do tema, ouviram-se os aplausos empolgados da plateia.

Os músicos se conheceram há alguns anos, quando Esperanza fazia shows no Rio de Janeiro e foi apresentada à música de Guinga pelo guitarrista Ricardo Vogt, que toca com ela. Aí, o autor de “Catavento” e “Girassol” fez uma pequena participação em um dos shows de Esperanza, mas o contato já estava feito.

Entre garfadas em um almoço corrido, que antecipava as entrevistas a veículos de imprensa que aguardavam no saguão do hotel, a dupla recebeu o Álbum e falou da parceria, da amizade e do encanto mútuo com a música do outro.

ÁLBUM – Como foi o encontro de vocês?
GUINGA – Há alguns anos a Esperanza foi tocar no Rio e um músico que toca com ela, o Ricardo Vogt, brasileiro, a fez conhecer minha música. Ela gostou e me convidou para fazer uma participação em seu show lá no Rio de Janeiro; toquei duas músicas. Estabelecemos um elo muito bom. Gostei dela e ela também gostou de mim. Depois não nos encontramos mais. Aí surgiu essa oportunidade do Sesc de trazê-la. Esse concerto do Sesc tem a maior importância por me colocar de novo ao lado dela. A gente pode fazer muita coisa pelo mundo afora, caso ela queira, muita coisa da minha obra combina profundamente com ela. E o principal é que ela gosta da minha música, né? Assim como também gosto muito da música dela.

Esperanza, como é sua relação com a música brasileira? Já tocou com Milton Nascimento, fala português muito bem…
ESPERANZA – E uma relação que eu adoro! Não sei, quando você é criança e escuta alguma coisa, quer escutar mais. E por outras coisas você não se interessa. A música me tocou. Tenho a oportunidade de tocar, de passar tempo com maestros que eu adoro, que são uma lição para a minha vida. A parte mais importante da evolução da informação artística é a que se passa de pessoa para pessoa, durante os anos. É claro, escutando, analisando a música deles, mas estar ao seu lado falando e olhando como trabalha, como pensa, é muito mais importante. Quero muito crescer e me desenvolver como poetisa e compositora. E também gosto muito de tocar. Para mim isso é o paraíso e a universidade ao mesmo tempo.

Há algum aspecto mais técnico no jeito de tocar do Guinga que chame sua atenção?
GUINGA – Posso adiantar uma coisa: não existe aspecto técnico na ligação que nós temos. Ela sabe que eu sou intuitivo, que minha formação é informal. Apesar de ela ter estudado, o que a privilegia é totalmente o inconsciente, a sensação. Ela não se detém a nada técnico. Ela é louca por melodia. Esse é um ponto que temos em comum. Não só amamos, como acreditamos em melodia, que é mais importante. Hoje em dia muita gente não acredita nisso. Nós acreditamos. Mas aspecto técnico não existe mesmo. Ela nunca parou para ver nada tecnicamente meu, nem eu dela.

Como se definiu o repertório do show?
ESPERANZA – Não é um aspecto muito importante. Gosto de investigar e explorar as canções que me tocam, e quando sinto que tem algo deixo lá para tocar um dia em um espetáculo. O repertório cresce com o tempo. Certas coisas você tem de sentir tocando. As canções que estudo são aquelas que eu gosto tanto que quero sentir aquilo saindo pelo meu corpo. Quero sentir a melodia, as palavras, saindo de mim. Posso também dar emoções, energia a essas melodias ou ritmos. E durante esse processo normalmente cresce um arranjo. Você sabe quando o arranjo funciona. E você sabe quando não, quando ainda é preciso mais trabalho. Então, é assim que cresce o repertório. Por exemplo: durante esses dias estamos tocando as canções muitas vezes e falamos: Vamos cantar essa canção mais uma vez, você canta assim, eu canto ali”. Para dizer ao final que tem de ser orgânico, tem de ser algo em que você crê. Aprendi a canção dele “Di Menor” porque tenho interesse, porque gosto muito da melodia e queria sentir como é tocar essa melodia no meu instrumento. Não foi para um concerto. Não sabia que um dia poderia tocar isso com ele. Só era para sentir como é essa melodia. Parece tão louco, posso entender, posso tocar, tenho capacidade de acrescentar algo que toca em mim dentro da música. Acho que é isso que eu quero dizer. O aspecto técnico é importante, mas o que você estuda tecnicamente é para você se sentir livre para dizer o que sente. Algumas pessoas não têm nada tecnicamente, mas existe num nível mais alto do que o técnico, que é suficiente para transmitir o que há dentro do coração delas. Quando você tem uma combinação dos dois aspectos você tem o mestre. 

Vocês pensam em fazer algum registro desse encontro?
GUINGA – Na verdade, nós estamos há menos de um dia juntos. Estamos correndo contra o tempo porque temos um concerto amanhã e temos de apresentar um trabalho lá com o maior número possível de participações dela. Se ela chegar lá para tocar uma música, para mim já é o suficiente. Mas é lógico que interessa a qualidade e a emoção. Posso adiantar que até agora nós já temos sete músicas. A gente está trabalhando como cão, de cansar mesmo. Mas não é só pelo aspecto de trabalhar em si, é pelo aspecto de fazer com amor.

Como você encara esse encontro de gerações, Guinga?
GUINGA – A música não tem idade. Eu, mais novo que ela, com 20 anos, fui tocar com o Cartola. O Cartola era mais velho do que eu hoje. Na época, eu tocava com o João Nogueira. Em um show que fizemos juntos, o João disse: “Cartola, meu violonista pode te acompanhar, se você gostar”. Nós ficamos muito amigos, eu frequentava a casa dele. A música é isso. Vinicius de Moraes dizia: “A vida é a arte do encontro”. É isso aqui, encontro com a menina, espírito genial. Não sou só eu que falo isso, o mundo todo fala.

Você tem feito muitas parcerias nos últimos tempos, não? Ano passado fez o disco com o Francis Hime, recentemente esteve aqui em São Paulo com o Quinteto Villa-Lobos…
GUINGA – É que a música foi feita para trocar mesmo. Nos últimos oito anos, tenho tocado sempre sozinho pelo mundo. Eu gosto! Para mim, só eu e Deus, do jeito que a música nasceu, pode dar muito certo ou pode dar muito errado. Mas quando dá certo é uma emoção muito grande. Tive um professor de patologia, ele era velhinho… Eu tinha 19 anos, ele já tinha 80 e tantos, professor Sales Cunha. E as aulas de patologia eram aulas de sabedoria. Tínhamos também uma professora muito amarga. Ela perseguia os alunos, estava sempre pronta para meter porrada, dar nota ruim, reprovar. Um dia esse professor não resistiu e lhe disse: “Pensa bem, a vida é uma coisa ótima para compartilharmos, abrir as portas, fazer amizades, amar, se apaixonar… Sozinho é ruim até para comer doce”. Isso me marcou. Adorei a frase dele. O palco é isso, dividir.

Esperanza, você está trabalhando em algum novo álbum? Está trabalhando em estúdio?
ESPERANZA – Sim, estou. É um projeto com meus deuses da música, mas também com uma conexão bem familiar com amigos. Gosto de tocar com eles, e eles também gostam de estar comigo. Então, pelo respeito que tenho por Wayne Shorter, Herbie Hancock e Milton Nascimento pretendemos fazer um projeto juntos, com músicas novas, com ideias novas. Perguntei ao Guinga se podemos gravar uma canção dele. Nós amamos uns aos outros e queremos fazer músicas lindas. Esse é um projeto que estamos avançando lentamente para que possamos fazer no tempo da música. Não é para nenhuma companhia, não é para alguém lá fora. É para nós. E estou trabalhando tambéem com outro grupo de criadores mais pirotécnicos. Quando você está trabalhando duro na semana, não quer pensar muito, só vai para lá sentir. Essa música que desperta nosso aspecto humano mais primitivo, que precisa ter algo do chão, do groove… Estamos experimentando com outras personalidades esse aspecto da música, que me faz procurar esse outro lado. E só de pensar nesses dois aspectos muita inspiração está vindo a mim. Sinto muito que a musa está atrás de mim com um chicote, dizendo “Vai, vai!”. E me sinto muito empolgada com esses dois projetos. É muito assustador, porque são meus ídolos, mas acho que o medo ajuda também. Vamos tocar nosso primeiro concerto na Polônia em agosto, mas não sabemos quando vai ser, não queremos correr com nossos projetos. Quando ela (a musa da música) disser “Vai”, nós vamos!

fonte:itaúcultural

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