“eu não sou uma qualquer”

Polêmica, a atriz Augusta Ferraz dedicou uma vida inteira ao teatro pernambucano, e continua incorporando personagens dentro e fora de cena


Bastou ela colocar os pés no hall de entrada do Teatro Apolo, na rua homônima do Bairro do Recife, para se fazer em casa. Cumprimentou a todos pelo nome, como se desse “bom dia” à família, ao acordar. Conversou com os técnicos de iluminação, que estavam sobre o palco arrumando os holofotes, com o pessoal da administração, com os porteiros. Dos 55 anos que Augusta Ferraz carrega no corpo mignon (tem 1,60m), mas imponente, 40 são dedicados ao teatro.

Trajava um vestido laranja de alças sobreposto a um jeans azul escuro. Os cabelos grisalhos estavam soltos. A voz doce, treinada para ser nítida a todos que estejam sentados na plateia, guiava o percurso por entre as cortinas pretas do palco. Passamos pelos bastidores para chegar ao teatro vizinho ao Apolo, o Hermilo Borba Filho, onde faríamos fotos e a entrevista.

 

São mais de 70 peças no currículo da atriz. A primeira de que participou foi uma Paixão de Cristo, aos 15 anos, com o grupo de teatro do Colégio Leão XIII, no bairro do Espinheiro. “Eu odeio esse costume de mostrar Jesus lá, como um sofredor, pregado na cruz. Ele nunca é mostrado com um homem que viveu uma história linda, de amor às pessoas”, critica. Estreou logo no Teatro de Santa Isabel. “O palco ainda era inclinado, não era como é hoje”, lembra. “Eu era uma daquelas mulheres que acompanhava o cortejo até a cruz”. Enquanto caminhava, sentiu um prego atravessar o dedão do pé. “Foi aquela dor insuportável que me consagrou como atriz. Nunca ninguém tinha sofrido tanto a morte de Jesus”, ri.

 

Enquanto conversava, sem muito roteiro, fazia cena da própria história. Encarnava as várias personagens, todas Augustas, que viveu ao longo dos anos. Profissionalmente, seu primeiro papel foi na peça A Dama de Copas e o Rei de Cuba, no final dos anos 1970, um texto de Timochenko Wehbi sob direção de Romildo Moreira. “Augusta sempre foi uma grande atriz, desde muito nova. Quando chegou, já tinha muita noção de palco e de interpretação”, analisa. Com Romildo Moreira no comando, também atuou em Os Filhos de Kennedy, texto de Robert Patrick, peça que a projetou como atriz. Poucos anos depois, trocaram de papel. “Já fui dirigido por ela. Participei de Lisístrata, uma comédia grega de Sófocles, que tinha o elenco enorme”, lembra o diretor. “A exigência dela com a própria atuação também se reproduz na direção. Ela se preocupa com detalhes da interpretação de todos os atores, do protagonista ao figurante que fará apenas uma rápida aparição”.

 

Ela também já estrelou vários monólogos. Entre eles, MEDÉAponto (do diretor Marcondes Lima, 2007) e Malassombro (dirigido por Carlos Carvalho, 1995). O professor de teatro e diretor Antonio Cadengue comenta que os monólogos caem muito bem em Augusta. “Sua força vem das entranhas e isso é muito impactante na atuação”, analisa. “Quando ela está contracenando com outro ator é preciso que ele tenha a mesma força emocional que ela. Nem sempre isso acontece”, completa Cadengue.

 

Augusta já fundou companhias como a Ilusionistas, com Moisés Neto, e as Pharkas Serthanejaz, com sua mãe Zuleima Ferraz (falecida há 13 anos), mas nunca gostou de participar de coletivos de teatro. “Sempre me destacava dos outros atores e isso acabava gerando conflitos”, justifica a atriz. “Já chegou a sair no jornal uma crítica com o título O voo solitário de Augusta Ferraz, e isso é uma injustiça com o trabalho de todo mundo que participou, que passou meses ensaiando”.

 

 a supersincera

 

É provável que a reputação de atriz excepcional que Augusta Ferraz conseguiu construir seja tão consolidada quanto a fama de encrenqueira. Sem medo de dizer o que pensa, se tornou colecionadora de desafetos no meio cênico. “O convívio com ela é muito difícil. Quando alguma coisa a incomoda, principalmente a falta de educação das pessoas, ela briga, reclama”, comenta Romildo Moreira. “E ela tem a personalidade muito forte, opiniões muito formadas. Convencer ela a fazer alguma coisa com a qual não concorde é impossível”, avisa o diretor.

 

Ele aponta que, talvez, esse temperamento a tenha afastado de uma projeção nacional. “Os produtores têm esse cuidado de escolher atores que tenham bom relacionamento, que sejam fáceis de trabalhar, principalmente em viagens”, comenta Romildo. “Já ouvi algumas pessoas dizerem que adorariam que ela estrelasse uma peça, mas que ficam em dúvida de chamá-la porque é imprevisível a forma como ela vai lidar com algumas situações, como um atraso no pagamento ou um motorista que fale demais”, cita.

 

Ela nunca largou o Recife. A amiga Paula de Renor, também atriz e produtora, agradece. “Todo mundo que era bom queria ir embora. Mas Augusta acreditava que o Recife poderia crescer no teatro, e sempre trabalhou muito para que isso acontecesse”. Com relação à personalidade da atriz, coloca que os atritos nascem de uma necessidade de ser sincera. “Se ela tiver um problema com alguém, ela fala na hora. E não mede palavras. Mas aquilo acaba ali. Ela não sai por aí falando mal de ninguém pelas costas, nas mesas de bar”. E completa: “as pessoas não estão acostumadas a ouvir algumas verdades”. Paula de Renor considera que o tempo amansou um pouco Augusta. “Quando ela era mais nova, era mais impulsiva. Mas as pessoas amadurecem. Algumas pessoas se incomodam, mas Augusta sempre foi muito corajosa nas colocações dela, em dizer o que pensa”.

 

As duas contracenaram juntas na peça Besame mucho, no final dos anos 1980, numa direção de José Pimentel. “Era uma coisa bem naturalista. E foi engraçado porque as pessoas nos reconheciam na rua, paravam a gente nos lugares”, lembra Paula. Viajaram pelo estado inteiro. “Era um caminhão-baú. A gente jogou umas almofadas lá e ficava dividindo espaço com o cenário”, ri. Depois disso, acabaram não trabalhando mais juntas, por diferenças de estilo, mas não se afastaram. “A gente tem a mesma idade, mas ela começou antes de mim. Eu sempre tentei aprender o máximo com ela, sou uma grande admiradora. Até hoje, depois de um espetáculo meu, faço questão de ouvir as críticas dela, que são sempre muito construtivas”, completa.

 

No início do mês de abril, Augusta colocou a carroça na rua. A mesma que a professora de história Guiomar (na peça Guiomar, a filha da mãe, de Lourdes Ramalho, 2003) dirigiu pelo mundo. A companheira de palco saiu junto, em forma de protesto. Na rua do Hospício, no bairro da Boa Vista, criticou o descaso do poder público com os teatros pernambucanos. Desde dezembro de 2010, o Teatro do Parque enfrenta uma temporada estéril, fechado para reforma. “O ator não tem que entender só de palco. E nisso eu me diferencio drasticamente dos outros atores de teatro daqui. Eu me posiciono.”

a vida é palco

Em casa, já tinha avisado, a entrevista não seria possível. Mora num prédio alto, por trás do Forte das Cinco Pontas, no centro do Recife, com vista para os rios Beberibe e Capibaribe. “Lá em casa é um inferno, a gente não teria paz para conversar”. Sozinha, cria nove gatos e um cachorro, como os filhos que não teve. É viciada em café e odeia sapatos e sutiãs. Filha única, cresceu no bairro do Arruda, mas não se dá muito bem com a família. “Eu tenho o espírito muito mais livre que eles”. Já foi casada uma vez – não no papel. Muito menos no religioso. “Porque era com uma mulher”, justifica. “Mas já descasei”.

 

Começou a gostar da arte de interpretar assistindo à televisão. “Quando eu era criança, na década de 1960, o que tinha de bom no cinema passava na TV. A gente assistia aos filmes de Visconti, de Fellini”. Não tem nenhuma atriz como inspiração, mas admira várias. “Nenhuma brasileira”, dispara. “Gosto muito de Bette Davis, Katherine Hepburn, Sophia Lauren”. Apesar de, hoje, achar péssima a programação de tevê, é noveleira assumida. Sem nenhum receio da cultura pop, de dizer que acompanha. “Tem capítulo que eu morro se não assistir”.

 

A dedicação exclusiva ao teatro não foi uma escolha por restrição às outras possibilidades. Foi falta de opção. “O teatro era o que a gente tinha aqui. Essa coisa do cinema pernambucano ganhando força é muito recente”, pondera. “Eu tenho vontade de fazer cinema. De escrever roteiros também, fazer uma coisa bem Glauber [Glauber Rocha, um dos idealizadores do Cinema Novo]”. Quer falar de sociedade, de política, mesmo no teatro. Quer falar de realidade.

 

É uma estudiosa. Além de pesquisar tudo o que pode sobre artes cênicas, também lê bastante sobre psicologia, filosofia e sociologia. Se formou em Música, pela Universidade Federal de Pernambuco, e canta em quase todos os espetáculos. Gosta de passar cinco, seis horas no teatro, se preparando para entrar em cena. “Eu fico montando o cenário, às vezes durmo, tomo um café”. Mas, se não tiver tempo para seguir esse roteiro, consegue dar conta. “Não tenho ritual. Em dois ou três minutos fico pronta para entrar no palco. Não é sorte, foram décadas me exercitando para isso”.

Apesar de ter na bagagem peças conceituadas como Guiomar, a filha da mãe e Pluft, o fantasminha, além de outras setenta produções, Augusta Ferraz lamenta a falta de retorno financeiro dos palcos. “Eu tenho medo de ficar que nem a minha velhinha do INSS, esse meu alter ego que me atormenta, a quem não resta nada além da aposentadoria no fim da vida”. Todo final de mês, passa por sufoco para conseguir pagar as contas. Continua trabalhando muito e está longe demais de parar. “Ainda não fiz, nem de longe, tudo o que eu gostaria de fazer no teatro”, admite. “Mas eu reconheço meu potencial e sei da qualidade do trabalho que eu desenvolvi nesses 40 anos. Eu não sou uma qualquer”.

fonte:DP/Camila Almeida (texto) / Paulo Paiva (fotos)

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