Em “Tangolomango”, lançado hoje, Raimundo Carrero escreve sobre a personagem Tia Guilhermina
Carrero recebeu a reportagem da Folha de Pernambuco em sua casa para conversar sobre o livro um ano depois de conceder uma entrevista, também em sua residência, sobre os projetos para 2012. Entre as duas datas, o escritor, que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) em outubro de 2010, parece ter reconquistado o vigor. “Foi um desafio muito grande escrever este livro porque foi num momento de doença. Passei dois anos de cama e escrevia o texto apenas com o indicador direito”, diz Carrero.
No texto de apresentação o autor sugere: é melhor ler o livro das 6h da manhã ao meio-dia, “com a força da luz e do sol”. “Eu acho que há um horário bom para ler romances. Ensaios devem ser lidos à tarde, literatura é para ser lida no sol da manhã. Eu escrevia sempre de manhã, acho que nesse horário o leitor pode entrar na psicologia do livro”, comenta. “Dizem que não há um leitor, e sim vários leitores em um. Alguém está lendo e depois sai para tomar um café, quando volta se tornou outro leitor. Então é melhor, se puder, ler de uma vez só”, ressalta.
A força do livro parece estar nos protagonistas, a delicada construção de Tia Guilhermina e Matheus, seu sobrinho, personagens que gostam de viver, embora nem sempre passem por boas experiências. A obra traz a jornada de Guilhermina por um Recife vagamente familiar, a nostalgia por um tempo passado indefinido, o Carnaval, a boemia, e Carrero descreve, com uma narração sofisticada, o processo de autonomia de Guilhermina diante do abismo emocional, a solidão gerada pela ausência de amor, o zelo daqueles que cedem à loucura.
“Tia Guilhermina me surpreendeu. Eu sou um escritor técnico, tenho domínio da narrativa, mas nesse caso foi diferente. Eu achava que ela iria ficar trancada em casa, tocando piano para Matheus, mas de repente ela saiu, velhinha, com sombrinha na mão, encontrou o desfile do Galo da Madrugada, na frente dos Correios, fez um striptease na frente da multidão, na marquise do Trianon”, diz o autor, descrevendo um dos trechos do romance, surpreso com a ousadia de sua própria criação, uma mulher que queria ser prostituta mas temia a solidão do trabalho.
Tia Guilhermina é uma intrigante mistura entre afeto, serenidade vulnerável, gentileza diante da crueldade e lascívia provocada pela negação do desejo. “Ela é manhosa. Não gosto quando dizem que é safada, fico irritado, ela é sedutora, carismática, tem um grande afeto. Mesmo nas cenas mais cruéis e violentas, ela reage sempre com afeto. É uma personagem viva”, sugere o escritor.
“Getúlio Vargas dizia: ‘Saí da vida para entrar para a história’. Com esse livro, costumo dizer, parafraseando Getúlio: ‘Saí da literatura para entrar na vida’. Tia Guilhermina é vida pura, uma mulher envolvente, transformou o romance numa grande vida, me tomou; terminar esse livro foi cruel, pois vou ficar sem ela por muito tempo”, diz Carrero.
Assim como em livros anteriores, Carrero investiga a relação entre loucura, sexo e fé, construindo a história a partir de personagens movidos por volúpias e crenças. “Essas questões fazem parte do meu ponto de vista”, diz o autor. “Minha visão de mundo envolve o homem em erupção. Mais do que a condição humana, costumo falar do ‘abismo humano’. Procuro investigar esse abismo, sentir; o ser humano não é só um ser em movimento, é um ser em erupção”, explica o autor.