Com música, amigos e frequentadores do bar se despedem de Alfredinho, do Bip Bip

Enterro foi no cemitério São João Batista. Dono de reduto da boemia carioca morreu, aos 75 anos, no sábado de carnaval

Nas ruas de Copacabana, Familiares e amigos acompanham o caixão de Alfredinho, que foi enterrado no cemitério São João Batista Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
Nas ruas de Copacabana, Familiares e amigos acompanham o caixão de Alfredinho, que foi enterrado no cemitério São João Batista Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

Por Elenilce Bottari

RIO — O bloco de Alfredo Jacinto Melo, ou simplesmente Alfredinho do Bip Bip, atravessou o cemitério São João Batista, em Botafogo, ao som de grandes clássicos do samba e, como ele gostava, sem muita conversa pelo caminho, para não atrapalhar os músicos. Um erro geográfico (o local de sepultamento ficava à direita) levou o cortejo-folião a andar de costas: “seguimos à esquerda” conclamavam os amigos, em mais uma homenagem divertida ao carioca da gema, de coração socialista, amante da música e defensor dos oprimidos e da liberdade. O enterro foi às 16h.

Alfredinho morreu na tarde deste sábado, aos 75 anos, enquanto dormia. Ele estava com a saúde debilitada e enfrentava complicações na tireoide. O velório foi no bar de 18 metros quadrados em Copacabana, que, por mais de meio século, foi templo do samba, da bossa nova e do chorinho. As mesas foram enfileiradas, improvisando a lápide, enquanto cadeiras de plástico, umas sobre as outras, guardaram as flores do campo que ornamentaram a cerimônia. Sobre o caixão, as bandeiras do Botafogo e da Mangueira.

Amigos e frequentadores velam Alfredo Jacinto Melo no Bip Bip, em Copacabana Foto: Roberto Moreyra 04-03 / Agência O Globo
Amigos e frequentadores velam Alfredo Jacinto Melo no Bip Bip, em Copacabana Foto: Roberto Moreyra 04-03 / Agência O Globo

A homenagem de corpo presente foi organizada pelos amigos frequentadores que desde sempre se acostumaram com as regras da casa, que tornaram o lugar reduto da boemia carioca. Às 11h15 desta segunda-feira começou o samba no Bip Bip.

Enterro do Alfredinho do BIP Bip acaba em samba
Enterro do Alfredinho do BIP Bip acaba em samba

— Nós decidimos que o velório seria aqui mesmo. E vai ter música, como ele gostaria. O pessoal que toca ao longo de todos este anos está vindo para cá, e vamos fazer uma roda de samba, chorinho, bossa nova. A ideia é sair daqui em cortejo até o [cemitério] São João Batista, onde ele será enterrado — anuncia o músico Ary Miranda, dono do cavaquinho que há mais de três décadas encheu de música o espaço.

Apesar do jeito aparentemente improvisado, o reduto boêmio foi se organizando naturalmente.

Amigos e frequentadores do Bip Bip, um dos redutos do samba e da boemia carioca, acompanharam o velório de Alfredinho no próprio bar. Ele morreu aos 75 anos
Amigos e frequentadores do Bip Bip, um dos redutos do samba e da boemia carioca, acompanharam o velório de Alfredinho no próprio bar. Ele morreu aos 75 anos

— Nos anos 90, formamos uma roda de samba que funcionava às quintas. As segundas era choro, mas fez tanto sucesso que passou a ser segundas e terças. Às sextas, era meio mistureba. Sábado nunca tinha nada, era quando ele promovia debates, era o dia que não tinha música. A gente passava filmes na calçada — conta Ary.

Alfredinho acompanha roda de samba no Bip Bip Foto: Gabriel Monteiro 28-06-2018 / Agência O Globo
Alfredinho acompanha roda de samba no Bip Bip Foto: Gabriel Monteiro 28-06-2018 / Agência O Globo

A promessa era tocar de tudo um pouco nesta segunda-feira. Embora apaixonado por música, Alfredinho nunca mandou um “toca aquela”. Assim, nenhum dos amigos sabe qual a canção preferida do dono do bar.

— Há duas semanas, eu falei com ele: “Alfredo na quinta-feira vamos fazer a roda com só você pedindo música”. Ele topou. Mas a gente acabou esquecendo. Apesar de ser o dono do bar, o respeito pela música era tanto que ele nunca pediu nada — lembrou o músico e jornalista Tiago Prata.

O jornalista começou aos 9 anos a aprender, ali mesmo, os primeiros acordes do cavaquinho e depois do violão de sete cordas que o acompanhou na homenagem desta segunda-feira de carnaval.

— O Bip Bip deve ser o lugar do mundo que mais teve roda de samba na história — arriscou Tiago Prata.

Encontro ocorreu sábado à noite (2 de março), horas após falecimento do dono do bar, um dos principais redutos do samba e da boemia carioca
Encontro ocorreu sábado à noite (2 de março), horas após falecimento do dono do bar, um dos principais redutos do samba e da boemia carioca

O padre José Roberto da Igreja da Ressurreição fez a missa de corpo presente no Bip Bip. Logo após, o caixão seguiu em cortejo até o carro fúnebre que levou o corpo para o cemitério São João Batista. A missa reuniu boêmios, comunistas e amigos que juntos rezaram o Pai Nosso e cantaram “Tristeza”. O caixão foi levado ao som do samba da Mangueira, dos hinos da Internacional Socialista e do Botafogo — paixões de Alfredinho.

Entre as homenagens, a faixa de Lula e do PT: “Você é mais uma estrela s brilhar no céu”, assinada por “Lula, Gleisi Hoffman e os amigos do Partido dos Trabalhadores”.

Nascido em Santa Cruz, Zona Oeste do Rio, Alfredinho, um apaixonado mangueirense, assumiu o comando do bar em 1984, criando um ponto de encontro de sambistas, músicos, jornalistas, moradores do bairro e gente que amava as rodas de samba de alto nível do local. A maneira despojada de levar o negócio do dono e sua fama lendária de ranzinza, escondia um homem com fortes crenças políticas de esquerda e grande generosidade, sempre preparado para ajudar quem precisava. Solteiro e sem filhos, ele construiu sua grande família ali, com amigos de diferentes idades e gerações para toda a vida.

Segundo o produtor Paulo Figueiredo, quarta-feira foi o último dia que Alfredo trabalhou. Como não estava se sentindo muito bem, os amigos se revezaram nas tarefas do bar e da casa. Domingos foi o último a falar com Alfredo e combinou que o visitaria às 16h do sábado. Como tinha a chave, foi ele quem encontrou o corpo do amigo recostado na poltrona reclinável.

Gentileza e histórias de bar

E como já é tradição do Bip Bip, até o trâmite da morte virou história de bar.

— Na casa dele éramos sete. O corpo dele foi colocado no caixão, mas na hora de descer no elevador, descemos todos. Depois que o último entrou, o elevador andou um metro e meio e parou. Alguém foi tentar abrir por fora, mas não sabia e acabou quebrando a travinha de segurança. O jeito foi arriar o caixão e esperar. Esperamos mais de uma hora e tivemos que ser resgatados pelo Corpo de Bombeiros — contou Marceu Vieira.

O músico Paulo Cesar Feital lembra da generosidade do amigo de décadas.

— Eu não conheci ninguém que não tivesse um profundo respeito por Alfredo. Alfredo era um guia da ética, da defesa pela democracia, do auxílio aos mais necessitados. Este bar aqui é o ponto de encontro da democracia brasileira, do socialismo. Lembro que nós fizemos uma valsa, eu e Jorge Simas, pra Rosinha de Valença. Ela, na época, estava em estado vegetativo, numa necessidade muito grande de pagar as coisas, a família muito humilde. E Alfredinho transformou isso aqui num ponto de fraldas e medicamentos, que chegavam todo dia. E não era porque era a Valença. Alfredo era assim com todos. Um ser humano que personalizava a ética do carioca.

— Já passaram por aqui pelo menos três moradores de rua para homenageá-lo no dia de hoje.

Na manhã deste domingo, o Botafogo publicou, por meio de seu perfil no Twitter, uma nota lamentando a morte do torcedor e sócio histórico do clube.

Alfredinho também foi homenageado pelo Boitatá, na Praça Quinze , no Centro, com as músicas “Estação Derradeira” e três diferentes sambas-enredo da Mangueira. Ele também foi lembrado pelo bloco Simpatia É Quase Amor , em Ipanema.

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