Livro de Ruy Castro conta a história do samba-canção: um roteiro encharcado de amor e uísque

O circuito de boates cariocas que bombou nas década de 1950 é o cenário da obra do jornalista e escritor. Grã-finos, cantores, compositores, políticos, cronistas, clássicos da canção romântica e uma quantidade oceânica de uísque são os personagens dessa história cheia de histórias. Conheça algumas delas como aperitivo, depois corra para ler o livro, saboreando bons rótulos que indicamos no final do post – harmonizados com um punhado de sambas-canção

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Vinicius de Moraes e Dorival Caymmi: laços de amizade estreitados por um carregamento pesado de uísque escocês Vat 69, quando o samba-canção era o último grito nas boates cariocasPor Sergio Crusco

Supõe-se que o uísque tenha desempenhado um papel mais importante do que mero coadjuvante nas longas noites de boemia da época de ouro do samba-canção, no Rio de Janeiro dos anos 1950.

Quando Dorival Caymmi mostrou que sabia fazer mais do que belas canções praieiras de inspiração solar e baiana – e apresentou ao mundo sua face noturna, urbana e carioca em sambas lentos como Sábado em CopacabanaVocê Não Sabe AmarNão Tem Solução –, atribuiu parceria ao playboy e milionário Carlos Guinle, herdeiro do Copacabana Palace, em sete dessas obras-primas.

Muitos duvidavam – e há quem duvide até hoje – das habilidades líricas ou musicais de Guinle. Sergio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, foi direto e reto: “Música e letra por Dorival Caymmi, uísque por Carlinhos Guinle”. Caymmi nunca deixou a conversa muito clara, ora admitindo que Guinle fora parceiro de fato, ora dizendo que as parcerias homenageavam o amigo. Ruy Castro, autor de A Noite do Meu Bem – A História e as Histórias do Samba-Canção (Companhia das Letras)de onde colhemos esse caso, pondera: “O mais provável é que, em todos eles (os sambas-canção em suposta colaboração), Carlinhos tenha aparecido com uma ou mais ideias que Caymmi desenvolveu – o que é suficiente para caracterizar uma parceria”.

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Dolores Duran, uma das mais emblemáticas cantoras e compositoras da época de ouro do samba-canção, autora de A Noite do Meu Bem

scotch e a champanhota, como se dizia, que jorravam aos cântaros durante passeios de iate e no ambiente de penumbra das boates cariocas, sem dúvida, tiveram seus efeitos na criação de sambas românticos como os de Caymmi, os de Antonio Maria, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Maysa, Dolores Duran (que gostava de “uísque ouro”, sem gelo) e tantos outros compositores e intérpretes que viveram o auge do samba-canção e a grande febre do circuito das boates cariocas, que Ruy situa de 1946 a 1965 (já com a bossa nova sendo mordida no calcanhar pelas guitarras da Jovem Guarda).

Em mais um volume de fôlego e prosa longa, que se lê como quem ouve aquele bom papo, Ruy faz o panorama do ritmo, do momento político do Brasil que vai de Dutra a João Goulart e dos ambientes glamourosos e enfumaçados onde as notícias da República eram sabidas antes mesmo de serem deferidas nos gabinetes, fortunas eram negociadas ou trocavam de mãos, as mulheres mais belas, bem vestidas e cobiçadas circulavam – e onde se fazia grande música.

A boate surge como opção mais intimista de diversão noturna, ajustada aos novos tempos após a proibição dos cassinos baixada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra. Saíram de cena as orquestras numerosas, sambas sacudidos e exaltações à brasilidade, para dar lugar à economia musical, letras românticas e um ritmo mais arrastado, que já existia bem antes de ser moda narrar uma fieira de amores dilacerantes em formato de samba-canção.

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Linda Baptista, nascida no remelexo dos cassinos e das marchinhas de Carnaval, adaptou-se ao ambiente soturno e mal iluminado das boates, onde se cantava a dor de cotovelo

Intérpretes e compositores da velha guarda que souberam se adaptar ao novo modelo de música e entretenimento se deram bem. Aracy de Almeida veio com tudo e reinou em vários desses templos – inclusive no mais luxuoso de todos, a boate Vogue – com repertório de sambas-canção de Noel Rosa, àquela altura totalmente esquecido. Linda Baptista trocou o samba puladinho e as marchinhas de Carnaval por clássicos chorosos e soberbos de Lupicinio Rodrigues e Ary Barroso (“Risque, meu nome do seu caderrrrnooo…”)

Linda e Aracy também estrelaram um célebre sururu em que, tocadas por doses a mais de sabe-se lá o quê (uísque ou champanhota), se engalfinharam e rolaram pelo chão do Vogue por causa de um mal entendido sobre o salário que recebiam na boate – Aracy achou que andava ganhando menos e engrossou o angu. Passado o porre, voltaram às boas e concordavam que o ambiente da gente bem era perfeito para atuar, ser recebidas calorosamente pelo público e encher a burra, como comprova o diálogo que Ruy Castro reproduz:

“Pensei que esses grã-finos fossem antipáticos. Mas me enganei. Eles são gente simples”, disse Linda.

“São mesmo. O deles também é marrom”, completou Aracy. “Entrei no toalete depois que a madame saiu e vi”.

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Casais dançam no Golden Room do Copacabana Palace, hotel da família Guinle que também abrigava uma boate de sucesso, o Meia-Noite. No canto direito, de terno preto, o cronista Sergio Porto

A caixa de sombras

Que lugares eram esses exatamente? Ruy os descreve: “Boîte é uma palavra francesa, significando caixa, caixinha, caixote. Em meados dos anos 30, em Paris, o termo expandiu-se para boîte de nuit, para definir uma pequena casa noturna, quase às escuras, onde um homem e uma mulher podiam jantar e trocar segredos ao pé do ouvido, dançar de rosto colado, roçar os genitais e deixar-se alterar levemente pelo álcool, enquanto, acompanhada por um piano ou saxofone, uma cantora dizia duras verdades sobre o amor”.

Aqui o termo foi abrasileirado para boate, na época lugares que selecionavam seu público pelo alto preço cobrado em consumação mínima (medida em escocês, segundo Ruy) e não se admitia a entrada de mulheres desacompanhadas, de acordo com a moral da época – regra que não se aplicava a Aracy de Almeida, obviamente, que tinha trânsito livre em todos os parangolés da cidade. Aracy podia tudo, até ficar de saco cheio lá pelas tantas da madrugada e declarar: “Cansei de cantar. Vão tomar no cu!” Era aplaudida da mesma forma, como se tivesse terminado uma performance emocionada de Feitio de Oração.

Ruy faz um levantamento, acompanhado de mapa, de mais de 60 endereços da época clássica das boates – a maioria esmagadora concentrada em Copacabana e no Leme. Cenário que encantou Vinicius de Moraes ao desembarcar no Rio de Janeiro em 1950, depois de cinco anos servindo como diplomata em Los Angeles. O poeta chegou abafando, com 342 garrafas do escocês Vat 69, o que facilitou seu acesso a algumas das bocas mais talentosas e sedentas da ocasião. “Caymmi e Antonio Maria foram dois novos e legítimos amigos que Vinicius conquistou e passou a ver todos os dias”, escreve.

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O jornalista e cronista da noite Antonio Maria, autor de Ninguém Me Ama, música que boa parte dos fãs do gênero identificam como o samba-canção exemplar

Segundo as contas do autor, com um salário mínimo da época, 1200 cruzeiros, era possível pagar 12 doses de uísque no Vogue – uma merreca (o salário, claro). Quem não tinha acesso àquele mundo soturno e luxuoso contentava-se em ler os colunistas sociais Jacinto de Thormes e Ibrahim Sued e os cronistas Fernando Lobo, Sergio Porto e Antonio Maria, que descreviam o zum-zum das altas rodas. Ou ouvir os LPs em 10 polegadas que reproduziam o som dos melhores conjuntos e cantores da noite.

Polêmicas sobre a autenticidade do uísque servidos em certos endereços também eram notícia de jornal, o que levou o compositor de sambas e emboladas Manezinho Araújo (ele próprio dono de uma boate famosa, o Cabeça Chata), a lavrar sua máxima: “No Brasil, existe o uísque nacional, o uísque estrangeiro e o uísque de boate”.

Entre os bons bebedores perfilados por Ruy Castro, talvez o mais discreto tenha sido o pianista Sacha, que atuou durante 30 anos na noite, primeiro no piano bar do Vogue, depois no Sacha’s (mas cujo verdadeiro dono era Carlos Machado, o “rei da noite” e do teatro de variedades) e por fim no Balaio. Sacha tocava cerca de 12 horas por noite, consumindo uma base de 12 uísques a cada turno – sempre começava com Manhattan, de Rodgers & Hart, e tinha na ponta dos dedos, uma a uma, as músicas prediletas de seus fãs. Quando morreu, em 1982, os amigos fizeram as contas de quantas doses ele teria sorvido nesses 30 anos: cerca de 108 mil. “O lindo número de 4500 garrafas”, contabiliza o autor.

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Sylvia Telles, na capa de seu primeiro LP, dava ares joviais e menos dramáticos ao samba-canção, anunciando a bossa-nova que viria – e da qual também seria uma das grandes vozes

A Noite do Meu Bem reúne um elenco de respeito que ainda inclui os representantes do samba-canção dramático, de cores e amores violentos, como Cauby Peixoto, Ângela Maria, Nora Ney, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Jamelão. E aqueles que já se alinhavam com a modernização da música brasileira, menos afeitos a rompantes de interpretação, como Sylvia Telles, Doris Monteiro, Lucio Alves, Dick Farney, Alaide Costa, Johnny Alf. Cantores para quem a transição da penumbra das boates para os dias de luz da bossa nova foi um caminho suave – porque eram suaves de nascença.

No apêndice batizado de Cançãografia, Ruy Castro faz uma lista – que não se propõe definitiva – de sambas-canção produzidos de 1928 a 2011, começando com Ai, Ioiô (Linda Flor), de Henrique Vogeler, Luiz Peioxoto e Marques Porto. Mesmo durante e depois das guitarras, da tropicália, dos iê-iê-iês e dos roques nervosões, o samba-canção, música brasileira romântica por exemplo e definição, continuou sendo produzido por autores como João Bosco, João Donato, Caetano Veloso, Sueli Costa, Dori Caymmi, Angela Ro Ro, Aldir Blanc. E de certo não precisa que Alcione (por sinal, outra bamba do gênero) implore para que não o deixem morrer.

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Nana Caymmi é herdeira direta do que há de mais chique no samba-canção – não há prova maior do que seu álbum dedicado à obra de Dolores Duran

NANA E BETHÂNIA: HERDEIRAS

Maria Bethânia tem sido intérprete natural do samba-canção desde que deixou para trás o Carcará do show Opinião e a pecha de cantora de protesto para defender aquelas canções de amor justamente em seu nascedouro, as boates de Copacabana, onde passou a atuar quando o circuito dava sinais de agonia, em 1965. Não há disco de Bethânia que não inclua um samba romântico da antiga, de preferência os “de se rasgar”, na linha de Dalva, Linda, Nelson Gonçalves – os dramas descabelados de Lupicinio Rodrigues e por aí vai. Ainda contando que foi intérprete original de pelo menos duas das maiores pedradas do gênero produzidas na década de 70: Olhos nos Olhos, de Chico Buarque, e Amor Amor, de Sueli Costa e Cacaso. Em texto do show Maricotinha, diz sentir saudade daqueles tempos de glamour em que saracoteava pela noite na companhia de (ora, vejam só) Aracy de Almeida e cantava para o público “mais fácil, molinho” das boates – amolecido pelo uísque, naturalmente.

Mas a ideia de ficar molinho e ouvir um samba-canção (pra mim, pelo menos) continua sendo colocar uma bolacha de Nana Caymmi pra rodar. Garoto, por volta dos 15, lembro de ter lido uma entrevista sua, possivelmente reclamando da barulheira que ouvia na música (e da versão gritada de Gilberto Gil para Marina, talvez o maior samba-canção de seu pai, Dorival): “Faço discos para o sujeito ouvir em casa, sentado confortavelmente, tomando seu uisquinho”. (O que deu vontade imediata de crescer três anos e poder fazer o que ela sugeria.) Nana é a herdeira da face cool do samba-canção – a de Tom, Sylvinha, Doris, Dick, Dolores.

E é em homenagem a Nana que a gente, aqui no Dringue, serve a próxima dose.

UNS BONS UÍSQUES

blue_edicao_limitadaNão é preciso – muito menos recomendável – dar uma de Sacha, Vinicius de Moraes ou Antonio Maria para curtir um bom uiscão. Nosso conselho, se é que se pode dar, é sempre o de beber menos e melhor. Por isso fizemos uma seleção de alguns rótulos disponíveis nas boas casas do ramo – alguns que andam nas bocas desde a época em que Dolores Duran embalava goles e romances. Todos escoceses, OK? Os de milho e outros cereais a gente deixa para outro papo.

Na categoria Guinle – luxo total – o cobiçado Johnnie Walker Blue Label vem ainda mais elegante em sua roupa de final de ano. A caixa revestida em espelho multifacetado reflete a cor dourada do blend (Dolores aprovaria) criado pelo escocês Jim Beveridge e a brincadeira tem seu preço: cerca de R$ 885 nos bons empórios do ramo. Trata-se de uma tiragem limitada da qual 720 garrafas vieram para o Brasil.

Para lembrar Vinicius, por um preço camarada, o escocês velho de guerra Vat 69 8 anos (R$ 60,75 na Cia. do Whisky Empório) tem esse nome por ser o blend de número 69 escolhido entre 100 barris de teste por William Sanderson, no final do século 19. Na categoria uísque do dia a dia (ltroque-se “dia a dia” por “cerca de uma vez por semana”, que eu nunca fui que nem o Sacha), prefiro investir um bocadinho mais e ir de Jameson 8 anos (R$ 79,92 nas Lojas Americanas). É do tipo leve (pero no mucho, continua sendo uísque, com seus cerca de 40% de álcool), fácil de beber, com notas de carvalho delicadas.

Subindo a ladeira da ostentação outra vez, que tal algo Ângela Maria, Sapoti, que lembre dulçor? O Glenmorangie Nectar D’Or 12 anos (R$ 339 na Loja de Whisky) é maturando em barris antes usados para o descanso do vinho francês de sobremesa Sauternes. É seco, mas tem notas de limão, baunilha, gengibre, noz moscada, amêndoas tostadas, frutas tropicais – um pot-pourri de sensações.

O Laphroaig 10 anos (R$ 314.10 à vista na Loja de Whisky), um dos single malts mais celebrados do mundo, nunca provei. Então, fica a dica para mim mesmo, quando sobrar tutu ou alguém der a presença. Pelo que dizem dele, imagino que tenha um jeitão Nora Ney, grave, austero, tipo “ninguém me ama”. A descrição do produto promete sabor “complexo, encorpado, oleoso e defumado”. Um samba-canção daqueles, carregado de intrigas.

(Preços e disponibilidade consultados no dia 7/12/2015)

1 samba-choro e 19 sambas-canção

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Créditos das imagens: Reprodução

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