Por José Paulo Cavalcanti Filho – Escritor,poeta,membro da Academia Pernambucana de Letras e um dos maiores conhecedores da obra de Fernando Pessoa. Integrou a Comissão da Verdade.
Lembro do amigo Mickel Sava Nicoloff, saudades dele. E lembro, também, passagem do livro (excepcional livro) de Rostand Paraiso (O Recife e a II Guerra Mundial), com o autor nos dando conta de que “um grupo de tripulantes de um corsário alemão, afundado em nossas costas… seria enviado para um campo de concentração existente, ninguém sabia onde, no Nordeste”. Adiante, Rostand teve “a confirmação de que aquele campo havia, realmente, existido; tendo funcionado, de novembro de 1942 a maio de 1945, em terras da Fábrica de Tecidos Paulista, de propriedade dos Lundgren”. Mas o que liga Mickel a esse campo de concentração?, eis a questão. Para responder, é preciso voltar no tempo.
A história do eminente advogado Mickel Sava Nicoloff é (quase) inacreditável. O seu avô, general Sava von Nicoloff, era ajudante de ordens do marechal Hindenburg, na Primeira Guerra. Depois, Hindenburg foi Presidente da Alemanha (Hitler era só primeiro-ministro). Sendo hoje mais conhecido, assim quis o destino, como nome de um Zeppelin que, em 6/Mai/1937, pegou fogo e matou 35 pessoas na base naval de Lakehurst – Nova Jersey (Estados Unidos).
Finda essa guerra, o filho do tal general Sava von Nicoloff, batizado Mickel Nicoloff (que, mais tarde, seria pai do amigo Mickel), decidiu viajar pelo mundo. E assim foi por quase dois anos. Dando-se que, nessas andanças, acabou se apaixonando por uma morena de Caruaru. Maria das Graças. “O coração tem razões”… Depois, casados, voltaram a Berlim. O pai do nosso Mickel ligou para sua mãe, Sicha. E ela marcou encontro para dois dias depois, na sua casa, às 16 hs. As culturas são mesmo diferentes. Aqui, qualquer filho iria direto vê-la. Sem nem avisar. Seja.
Chegaram. Lá estavam mãe, tios e primos. O pai de Mickel entrou na casa com um cigarro aceso entre os dedos. A mãe lhe disse, contrariada: “Já se viu que você nasceu para casar com uma índia” (assim qualificou a mulher que o pai de Mickel tinha do lado). “Mas em casa de pessoas de bem não se entra fumando. Saia, jogue o cigarro fora e venha me dar um beijo”.
Saíram. Já na calçada, o futuro pai de Mickel jogou fora o guimba. Foi quando sua futura mãe olhou para o marido e disse: “Se você entrar nessa casa de novo, nunca mais vai me ver”. O pai disse que não fazia questão mesmo. Pegou no chão a ponta do cigarro ainda aceso, deu uma tragada e foram embora. Aquele beijo não seria dado. Depois a mãe Sicha foi morar na Bulgária. E nunca mais se viram. “Acima dos Deuses o Destino é calmo e inexorável” – escreveu, em uma Ode, Ricardo Reis (Fernando Pessoa).
Mickel Sava Nicoloff nasceu em Berlim, numa Alemanha que já se preparava para a (Segunda) Guerra. O pai ganhava o pão de cada dia se exibindo nos circos, em espetáculos de luta grego-romana, tendo como parceiro um dos filhos de Floriano Peixoto – antigo presidente do Brasil (1891-1894). Assim se deu até quando, ante a proximidade da guerra, e com uma criança para criar, decidiram seus pais que melhor seria voltar ao Brasil.
Aqui viveram sem problemas. Até o dia em que policiais bateram na porta da casa. E pediram que o pai de Mickel os acompanhasse. A mãe levou o marido até a porta e lhe deu um derradeiro beijo. Seria o último em suas vidas. Depois voltou, entrou no quarto, e saiu toda vestida de preto. Preto de luto. Nunca mais ninguém a viu com outras vestes. Usou preto, sempre, até morrer. E o pai de Mickel nunca mais voltou.
Quando Mickel Sava Nicoloff (alemão como o pai, só para lembrar) foi chegando à maioridade, sua madrinha, dona Marieta Lyra de Azevedo, oficial do Registro Civil de Caruaru, providenciou uma outra certidão de nascimento para ele. Por esses novos papéis, Mickel, deixou de ser alemão e passou a ter nascido em Caruaru. Seus mais de dez nomes familiares, porém, foram abandonados. Ficou só Mickel, como o pai; Sava, como o avô; e Nicoloff, sem o von, como nome de família.
Voltando ao que interessa, imagina-se que seu pai terá sido encaminhado a algum campo de concentração. Nunca se soube onde seria. Nesse ponto, e considerando o silêncio constrangedor de nossos livros de história sobre o tema, o leitor amigo perguntará se terá mesmo havido algo assim por aqui. Abro parênteses para dizer que se trata de instituição bem mais comum do que se pensa. E nesse ponto refiro, sempre, espaços à margem dos processos legais de cada país.
A primeira experiência com campos de concentração ocorreu com a Grâ-Bretanha, na Guerra dos Bôeres (que findou em 1902), quando os britânicos ainda ocupavam a África do Sul. Depois, com alemães, na colônia do Sudoeste Africano (atual Namíbia). O episódio é hoje conhecido como o primeiro genocídio do século XX, contra rebeldes Hererós e Namaquas – entre 1904 e 1907. E a França, pouco depois, respondeu por 3,5 milhões de mortes em 25 campos africanos próximos das atuais fronteiras com Iraque, Síria e Turquia.
Não só lá. União Soviética (entre 1923 e 1961, sobretudo nos tempos de Stalin), com os Gulags (Sibéria). China com seus laogais, até 1990 (no total, chegou a abrigar 50 milhões de chineses). Aqui mais próximos, na Argentina, durante a ditadura militar (de 1976 a 1983), os Centros Clandestinos de Detenção (CCD). E no Chile, durante a ditadura de Pinochet, o Estado Nacional e a Villa Grimaldi. Além de muitos outros lugares.
Entre eles Itália, entre 1930 e 1940, que teve 134 campos (inclusive contra judeus). Espanha, entre 1936 e 1974, campos coordenados pelo Serviço de Colonias Penitenciárias Militarizadas. Portugal, a partir de 1936, o Campo do Tarrafal, na ilha de Santiago (Cabo Verde). Japão, entre 1941 a 1945, patrocinou campos em vários países; chegando, na Segunda Guerra Sino-Japonesa e na Segunda Grande Guerra, a usar prisioneiros de guerra como cobaias, em testes com armas químicas e biológicas
Sem esquecer a Alemanha nazista, com os mais famosos deles (Auschwitz-Birkenau, Buchenvald, Treblinka, tantos mais) em que se estima terem sido 8 milhões de pessoas encarceradas nesses espaços que eram sobretudo de extermínio. Faltando lembrar campos ainda hoje existentes: em Guantânamo (Cuba), sob responsabilidade dos Estados Unidos; e na Coréia do Norte (com mortalidade elevada), de um ditador (Kim Jong-un) do século XIX em pleno século XXI.
Falta, na relação, nosso Brasil. Os números oficiais indicam que tivemos, na Segunda Guerra, 12 campos de concentração. Para manter presos cidadãos nascidos na Alemanha, Itália e Japão. Eram doze, a saber: Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Bauru, Pirassununga e Ribeirão Preto (SP); Dalmo Filho (RS); Trindade (SC); Presídio de Curitiba (PR); Pouso Alegre (MG); Niterói (RJ); Tomé-Açu (PA); e Chá de Estevam (PE).
Esse local conhecido como Chã de Estevam, em que ficava o campo de Pernambuco, hoje é Araçoiaba. Só que foram mais. Talvez o pai de Mickel tenha ido para lá. Ou mesmo para o de Paulista, citado por Rostand. Seja como tenha sido, imagino que terá tido morte natural; que, segundo o mesmo Rostand, eram “campos mais de confinamento que de concentração”.
Passa o tempo e o pai de Mickel jamais voltou para casa. Como a Lei de Acesso à Informação reduziu o prazo de sigilo dos documentos nacionais para 30 anos, em 2018 teremos a chance de saber o que aconteceu. Se os documentos não tiverem sido incinerados – como consta na tosca desculpa oficial dada para esconder a história suja dos quartéis, na ditadura militar de 1964.
De tudo se vendo que a história é, mesmo, o fato na versão do vencedor. Tivesse a Alemanha ganho a guerra, e os campos de concentração exibidos nos filmes seriam aqueles dos aliados. Inclusive no Brasil. Só que ela perdeu. E tristemente famosos acabaram só os dela. O que dá mesmo razão a Voltaire: “É precisamente assim que se escreve a história”. E segue a vida.