Por Fernando Gabeira
Estou em Brasília. É o segundo impeachment que presencio. Conheço a coreografia, embora, com o passar dos anos, ela tenha se tornado mais visual, mais voltada para as TVs, como os desfiles de escolas de samba. Vou documentar fantasias e adereços, mas no universo das coisas existe um personagem ao qual vou me dedicar: os smartphones. Há um exército de 170 milhões de smartphones no país, e quem viaja pelo interior vê sua capilaridade. Foi uma espécie de introdução das massas a um novo tempo movido pela busca da transparência.
O projeto do PT e da esquerda bolivariana era reproduzir uma visão do século passado, adaptá-la com a etiqueta de socialismo do século XXI, usando o caminho eleitoral e a conquista progressiva das instituições. Sem se dar conta, estava sendo engolfado por outro tipo de revolução em que os novos instrumentos tornam possível uma grande demanda internacional: transparência.
Em certos momentos, o PT rendeu-se a essa corrente: ampliou a autonomia da Polícia Federal, fez uma lei de acesso às informações. Mas ainda assim subestimou a luta pela transparência como se fosse apenas mais uma ideia entre outras. Ignorou suas bases materiais, sua irresistível dinâmica.
Essa miopia levou o PT à sua mais crucial contradição: armar o maior esquema de corrupção da História, no momento em que a sociedade e as instituições estão mais bem posicionadas para impor um alto grau de transparência.
Isso é um movimento que transcende o Brasil. As coisas toleradas no passado deixaram de o ser no presente. Dilma não entendeu isto. Nem o PT. Eles sempre dizem: no passado foi assim, se forem nos punir, têm de punir os outros.
Existe um momento em que as coisas que sempre foram assim simplesmente deixam de ser. Lembrar isso não é impulso de velho reacionário. Assim como não era lutar pela quebra do monopólio estatal das telecomunicações. O PT e a esquerda em sua órbita foram contra, mas não imaginam que surgiria dali a base material que iria contribuir para sua desgraça.
O PT perdeu o bonde da transparência, um tipo de luta que conta não só princípios, mas sólida e estrutura tecnológica, ao contrário da revolução bolivariana com benesses impagáveis. Diante desse novo universo onde tudo se compartilha, tudo se fotografa, tudo se investiga, a escolha política era dar as mãos à transparência e transformá-la numa poderosa aliada do governo, pois ela traz consigo uma outra bênção: a credibilidade.
O PT entendeu esse novo universo como um espaço onde poderia desenvolver sua guerrilha, esconder seus crimes, combater os adversários, ironizar os velhos reacionários adeptos da frase de outro velho, Lord Keynes: quando os fatos mudam, mudo de opinião — o senhor, o que faz? Muito em breve saberemos mais completamente o que se passou no Brasil. Talvez algumas pessoas não esperam apenas os fatos, mas uma avalanche de fatos para mudar de opinião.
Ao contrário do impeachment de Collor, o de hoje representa um trabalho que veio da sociedade e foi apenas secundado pelo sistema político. Quem assumir o poder já entra devendo. É um partido que foi sócio de um projeto criminoso. Se refletir sobre a desgraça do PT, não tentará novos assaltos, porque serão descobertos, não tentará interferir em instituições autônomas pois, ao lado da sociedade, elas não permitirão. Com os atuais meios de controle, é impossível a sobrevivência de um governo corrupto. Os novos governantes precisam refletir sobre isso.
O vídeo de Temer não toca nesse detalhe que mobiliza milhões de pessoas. Não podia esquecer. Nem vazar vídeos por engano. A espionagem internacional tem um enorme aparato para grampear presidentes. Dispensa colaboração espontânea.
Se hoje à noite estiverem comemorando a chegada do governo, não se esqueçam: a presença de Eduardo Cunha é intolerável. Não se erguem muros para discutir sua queda. É uma ponte simbólica entre a maioria e minoria no Brasil. É o nosso carnaval da quarta feira.
Artigo publicado no Segundo Caderno do Globo