O Tropicalismo: um movimento mais que musical

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     Quase 50 anos depois de iniciado o movimento, depois de aviões sob a cabeça e prisões, estamos aqui. São 70 anos de vida e 50 de carreira de Gil; 40 anos de um discaço pra inglês ver de Caetano. Foram-se Torquato, Glauber e Oiticica. Outros muitos sobreviveram ao exílio, ao ostracismo, às drogas. Que bom. Gal, sempre legal, Tom Zé pulando num só pé, Zé Celso Martinez, Jards Macalé e Rita Lee continuam aí, produzindo e se reinventando, e o Tropicalismo segue influenciando a cultura brasileira até hoje. Nós, por exemplo, transa vai, transa vem, continuamos pirando no Mangue Beat e Clube da Esquina; da parede de Pedro Luis e o calor de Fernanda Abreu ao escracho do Língua de Trapo. Ná Ozzetti, Luiz Tatit, Zé Ramalho, Luiz Melodia e até Kleiton e Kledir.

Claro que o mais consumido, pão e circo mais pedido, é o gol do fantástico. Se antes a música, o teatro, as artes visuais eram discutidas em mesa de bar, fico triste por minhas rodas de amigos. Carlos Calado, autor de Tropicália – A História de uma Revolução Musical (Editora 34, 1997), também lamenta que não veremos mais uma revolução estética como tivemos naquele fim dos anos 60. Ele não cita o Rap ou Funk, ou ainda o Sertanejo, gêneros não brasileiros autenticamente mas com grande penetração na cultura popular de nosso país nesse século XXI. Claro que verificamos nesses três estilos uma ordem estética, uma linguagem diferenciada. Sim, há até algo de relevante nos dois primeiros. Porém, parece soar artificial, pois logo nos parece que seguem uma cartilha do movimento, da cena. A atitude tropicalista buscou com coragem transformar esses sons de “mau gosto” em cult, em aceitáveis. Assim foi feito com os ditos cafonas Carmen Miranda, Luis Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Chacrinha, Orlando Silva, Vicente Celestino naquela época. Essa liberdade, esse peitaço e posterior aceitação a um som universal, estão hoje em falta. Claro, a aceitação não foi total. Mas quem queria que fosse? Logo a esquerda.

Bom, deixando de lado esses lados, hoje vemos pequenas tribos, vemos efervescências locais, mas nada com a personalidade que falamos. Exemplo do pessoal da “vanguarda atual” de SP: Céu, Marcelo Jeneci, Gui Amabis, o pessoal da Nação, Guizado, Catatau, Otto. Hoje eles revisitam o brega. Nesse momento, paro as seguidas Tropicalistas para escutar Naquela Mesa, dor de cotovelo de mesa de bar que Otto canta a letra que o filho de Jacó do Bandolin sente saudades do pai. É possível ver uma unidade estética e de linguagem. Eles têm um conhecimento de sons, bem regionais, até folclóricos. Jazz, samba, maracatu, eletrônico, guitarrada do Pará, enfim, alguns gêneros difíceis de rotular e outros mais tradicionais. São ecléticos, graça a Deus. E ao diabo, aqui na terra do sol. Sim, herança do comportamento rebelde tropicalista, como Caetas – João Gilberto o chamava assim – confessa em O Mundo não é Chato.

Carmen Miranda reaparece no centro dos nossos interesses estéticos. Um movimento cultural que veio a se chamar tropicalismo tomou-a como um dos seus principais signos, usando o mal-estar que a menção do seu nome e a evocação dos seus gestos podiam suscitar como uma provocação revitalizadora das mentes que tinham de atravessar uma época de embriaguez nas utopias políticas e estéticas, num país que buscava seu lugar na modernidade e estava sob uma ditadura militar.

COMO EU PERCEBO, MASTIGO O MOVIMENTO

Pra mim, como deus João Gilberto chamava Caetano é engraçado. Mas não interessa. O que Caetano diz era o cerne do âmbito revolucionário: a mudança na forma. Isso era o criminoso, era o que assustava tanto a direita, como a esquerda. Tanto os militares como vários intelectuais. Os militates sabiam que a linguagem, e não a língua, podia ser a verdadeira forma de ser subversivo. “Você acha injusto estar aqui, Caetano? Sim, respondeu ao major. A esquerda acha que sou vendido ao imperialismo americano, me sinto injustiçado. Pois não, você pratica uma das formas mais modernas de subversão. Você não me engana.” (Calado, 1997).

Apesar de terem sido discípulos da bossa nova, os criadores da Tropicália eram contra o nacionalismo exagerado que os adeptos da música popular brasileira, também conhecida como MPB, defendiam de maneira bastante enfática naquele momento. Nunca canções disseram tão mal do Brasil como as Tropicalistas.

Como o jovem em geral era muito diferente naquela época, acho importante (tentar) fazer uma relação do comportamento de quem comunica e do público receptor. Não é fácil criar uma relação de evolução. Não podemos dizer que o ouvinte era mais intelectual, mais letrado como um todo. Quando analisamos o impacto e a chegada da Bossa, dos Festivais, da Tropicália, mesmo dos Beatles, o registro que se tem do público é da elite estudantil, classe média burguesa. Como o caso de Nelson Motta. Através das histórias que ele viveu e contou em Noites Tropicais (2000), temos uma boa ideia do cenário. Nas festas nos apartamentos, nas pequenas reuniões, nos botecos. Fantástico investigar essas origens, saber como se deram os starts, quem era amigo de quem, como foram traçando os objetivos, quando tinha. Voltando à questão geográfica, eram privilegiados os jovens cariocas e paulistas do eixo Rio-SP. Podiam se dar ao luxo de vivenciar e acompanhar de perto esses acontecimentos que marcaram nossa cultura. Sim, respingava aqui no sul. Minha mãe foi aos 15 anos ver o Wanderley Cardoso em SP. Mas, enfim, tentando comparar os públicos daquela época e de hoje, mesmo o estudante em sua maioria hoje não conhece a origem, a importância desses movimentos que transcenderam a arte e foram vitais na vida político-social de nosso país. Sim, há esse belo material que faço minha pesquisa. Há muito mais, claro, inclusive sobre a Tropicália, como o interlocutor do espaço Barbican, em Londres, um centro multimídia de arte, no documentário Gal Costa – Do Tropicalismo aos Dias de Hoje (Barthz, 2007). Ele ressalta a importância desse movimento naquela época. Nunca ouvi amigos que foram ou moraram em Londres comentar sobre. Hoje, a ignorância da massa ouvinte do som do momento, do Faustão e do jabá, desconhece por completo significativa parte de nossa história. E não falamos apenas da importância histórica musical, e sim histórica na políticossocial. No que tange à personalidade do brasileiro, aos seus costumes, modo de pensar e de agir. Por sabermos que a busca por este conhecimento se dá quando da ruptura do paradigma, na crise, no caos, é que hoje não vemos uma essa procura maior por nossas origens. Como há tempos se prega justamente esta estabilidade de mercado, esse jogo de cartas marcadas, nada mudando, nada chamando para a atenção, tudo segue assim nessa e noutras indústrias do conhecimento, da arte, da cultura. A padronização de um comportamento na Internet, em redes sociais, mostra isso. Vemos conservadorismo absoluto no meio musical. Pouco de inovação, de novidades, de transformações. Porém, infelizmente, vejo que mesmo quem tem esse faro crítico sabe que algo pode e deve ser mudado, mas não sabe bem o quê. Como eu disse, é complicado se estabelecer comparações. Com os downloads de internet, uma revolução no meio musical, mesmo não sendo de discurso estético, aconteceu. É uma alteração de forma, não deixa de ser. Mas hoje o conteúdo seria também muito importante. Li outro dia que no futuro breve os jovens não irão mais a shows e festivais, e sim irão cada vez mais reverenciar gurus da computação como Steve Jobs, Mark Zuckerberg, Larry Page e Sergey Brin. Pois, afinal, o que tem para se revolucionar no formato, na linguagem da música hoje?

Não, também não precisa se exagerar. Belchior cresceu nesse ínterim e lembrou-nos depois que nossos ídolos ainda são os mesmos, e o que era jovem e novo, hoje é antigo. Ver o presente, ir a fundo, crescer nele, mudar ele. Ver, entender e agir.

Mas vejo que agora é hora de realmente entender, ou apenas, concluir. Ou não.

COMO EU ENTENDI O TROPICALISMO

Voltemos àquela confluência de momento, contexto, pessoas, talentos, tudo no mesmo caldeirão, sem marketing, com sedução autêntica, natural. Gil com seu encantamento – generoso, como diz Rita – efusivo, deslumbrado com tudo que é contemporâneo. Aprovava muita coisa, ou quase tudo. Ele e Caetano e os Mutantes, como eram bem liberais mesmo. Mais ainda era outro. Havia, e teria que haver, o toque de um cara, o cara do mercado. Comparado a Allen Klein, o empresário dos Beatles, Guilherme Araújo foi importantíssimo para o movimento. Era o começo do pensamento da indústria, de como ganhar dinheiro com aquilo tudo. Se o som era livre, criaremos a Gravadora Som Livre.

Segundo Gil, a Tropicália é diferente por uma série de fatores. É o último movimento modernista e o primeiro pós-modernista. Araújo, chamado por Jorge Mautner ou Jards Macalé, anos depois, por Stálin do Tropicalismo. Ele que cortava as questões polêmicas, em detrimento da questão comercial. Dizia “deixa pra lá, o importante é ganhar dinheiro. Estranho saber disso.

Mas, na hora de dar minha opinião à música, se é que eu devia, caio no problema da falta de tempo. Eu sei, que desculpa esfarrapada, mas tem um que questiona:louvado seja deus LSD é? E a pesquisa ao mundo erudito, compreender o mínimo sobre os arranjos de Rogério Duprat? O pessoal erudito era parceiro dos poetas concretos e foram se aproximando, virou tudo uma salada, uma geleia geral. Haja pão pra tudo isso. O circo foi montado. Todo ruído é música? Xi, arte contemporânea, desestruturalista, caldeirão caótico.

Encontrei uma forma de finalizar o texto, porque às vezes me sinto como a plateia do Caetano naquele dia. Não entendendo nada. Esse discurso, que finaliza o ótimo documentário de Marcelo Barthz (2007) é minha reação de quem achava que entendia. Digo, poderia parecer até pretensão, mas era a tentativa de crer que existia uma noção do rumo na forma como eu via hoje a indústria, o meio, meu mercado, meu trabalho, minha pesquisa, minhas dúvidas. De forma fácil e esperta, concluo com palavras do autor do livro, quando perguntado sobre a importância do Tropicalismo:

Talvez a principal lição ensinada pela Tropicália foi a de que a música brasileira deveria se abrir às novidades que estavam acontecendo no mundo, em vez de se fechar, como propunham vários artistas ligados ao PCB (Partido Comunista do Brasil). Inclusive pensavam que poderiam lutar contra o autoritarismo dos militares fazendo canções de protesto para “conscientizar” o público. Já os participantes da Tropicália eram contrários a essa maneira funcional de encarar a música.

Por Fernando Gomes – Como eu sinto o tropicalismo

REFERÊNCIAS: Principais livros, discos e documentários consultados

– Veloso, Caetano. O Mundo não é chato. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
– Motta, Nelson. Noites Tropicais – Solos, improvisos e memórias musicais. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000.
– Revista O Dilúvio. Edições 9 e 11
– Documentário: Gal Costa – Do Tropicalismo aos Dias de Hoje. De Marcello Barthz. DirecTV e Trama, 2006.
– Documentário: Gal Costa – Do Tropicalismo aos Dias de Hoje. De Marcello Barthz. DirecTV e Trama, 2006.
– Tropicália ou Panit Et Circensis (Philips, 1968)
– Caetano Veloso (Famous/Philips, 1971)
– Gal Costa (Philips, 1969)
– Legal (Philips, 1970)
– Os Mutantes (Polydor, 1968)
– Tom Zé (RGE, 1970)
– Gilberto Gil (Philips, 1969)