Nos anos 1960, o urbanista Lúcio Costa escreveu que Paraty “é a cidade onde os caminhos do mar e os caminhos da terra se encontram, melhor, se entrosam”: “As águas não são barradas, mas avançam cidade adentro levadas pela Lua”, completou. É o diretor artístico da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), Mauro Munhoz, quem recorda as palavras do autor do Plano Piloto de Brasília para avisar que a maré deve invadir as ruas do centro histórico da cidade fluminense na semana que vem. Tanto que passarelas foram instaladas no entorno da Praça da Matriz para ajudar os frequentadores da Flip a não encharcarem os pés (a previsão do tempo também inclui alguma chuva).
Após duas edições virtuais na pandemia, a Flip está de volta a Paraty. A 20ª edição da festa literária começa na quarta-feira e se estende até domingo com uma programação que homenageia a escritora Maria Firmina dos Reis (a primeira mulher negra a o ocupar o posto) e combina nomes de peso, como a francesa Annie Ernaux, recém-laureada com o Nobel de Literatura, a figuras da cena independente.
Pela primeira vez, a Flip será realizada às portas do verão (e não em julho, como ocorreu desde 2003) e no meio de uma Copa do Mundo também extemporânea.
Munhoz explica que a Flip foi idealizada para acontecer no inverno com o objetivo de movimentar a economia da cidade numa época do ano em que quase não aparecia turista por ali. Deu resultado. Este ano, no entanto, foi justamente a falta de dinheiro que alterou o calendário. Segundo ele, atrasos na aprovação de projetos via leis de incentivo à cultura prejudicaram a captação de recursos e inviabilizaram a realização do evento em julho.
O orçamento para este ano ficou em R$ 6 milhões (um pouco mais do que na última edição presencial, em 2019: R$ 5,3 milhões).
Mais autores
Mas os percalços não devem impactar a festa. Serão 20 mesas, como sempre, e há até mais autores convidados do que em 2019: 46 contra 33. O valor ingresso, porém, subiu: de R$ 55 para R$ 120. A programação paralela, que nos últimos anos cresceu a ponto de competir com a principal, também aumentou: serão 50 espaços parceiros (em 2019, foram 28), como a Casa Record, a Casa PublishNews, Casa Paratodos, que reúne as editoras Nós, Relicário, Dublinense, Macondo, Tabla e Ímã Editorial.
Editora da Nós, Simone Paulino aposta que a programação paralela vai “complementar” a oficial. A Casa Paratodos contará até com atrações internacionais, como o guineense Tierno Monénembo, que lança o romance “Pelourinho”, ambientado em Salvador. Coletivos e editoras independentes também poderão vender seus livros num espaço montado no Areal do Ponto, onde costumava ficar a Tenda dos Autores (agora, as mesas ocorrem no Auditório da Matriz, ao lado da igreja).
Para celebrar os 20 anos da Flip, antes de cada mesa serão exibidos depoimentos de paratienses sobre o impacto da festa literária em suas vidas.
Mauro Munhoz lamenta que o orçamento menor tenha prejudicado os projetos de formação de leitores desenvolvidos ao longo do ano todo em Paraty.
— Por serem projetos educacionais, os efeitos não são imediatos, só vão aparecer em cinco, dez, 20 anos. Precisamos chamar a atenção para isso — diz.
Pelo segundo ano consecutivo, a curadoria do evento é coletiva. São três nomes (ano passado eram cinco): Fernanda Bastos, da editora gaúcha Figura de Linguagem (especializada em autores negros), Milena Britto, professora da Universidade Federal da Bahia, e Pedro Meira Monteiro, da Universidade de Princeton, que integrou o coletivo que assinou a programação de 2021.
Ansiosa para levar a Flip para a rua (“Como baiana, sou da festa, da rua, do abraço), Milena diz que os curadores criaram uma programação que funcionasse independentemente do resultado das eleições:
— A literatura sempre acompanha as tensões sociais, mas é também lugar de respiro. Queríamos uma programação ética e esteticamente celebrativa, que mostrasse como a arte nos segurou até aqui e para onde a literatura olha quando tentam silenciá-la.
A homenageada, a abolicionista maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), de quem não restou nenhuma imagem, é autora de “Úrsula” (1859), o primeiro romance publicado por uma negra na América Latina, que retrata personagens escravizados com humanidade e denuncia a crueldade do cativeiro (leia a resenha sobre a biografia da escritora na pág. 5). Embora pioneiro, o romance passou mais de um século esquecido, mas, nos últimos anos, ganhou novas edições.
A obra de Maria Firmina será tema de duas mesas: a de abertura, “Pátrios lares”, com as pesquisadoras Fernanda Miranda e Ana Flávia Magalhães Pinto, e “Minha liberdade”, com a antropóloga Lilia Moritz Schwarz e o estudioso da literatura afro-brasileira Eduardo de Assis Duarte.
A política sempre respingou na Flip, mas o fenômeno se intensificou nos últimos anos, como nos gritos de “Fora Temer” em 2016 e 2017. Este ano não deve ser diferente, dada a presença, na programação principal, de autores como o líder indígena Davi Kopenawa, a americana Saidiya Hartman, estudiosa da escravidão, e até de Annie Ernaux, que já escreveu sobre o aborto e as dores da ascensão social.
Ex-curadora da Flip e editora da Fósforo, Fernanda Diamant, que deixou a festa literária em 2020 cobrando mais comprometimento antirracista, desconfia que, influenciado pelas eleições, o evento deste ano será menos de “resistência” e mais “propositivo”.
Diamant também elogia a presença de autores de não ficção que vêm conquistando leitorado fiel no Brasil, como Ernaux e Hartman, mas também o chileno Benjamín Labatut e a francesa Nastassja Martin.
Flávio Moura, também ex-curador da Flip e editor da Todavia, afirma que tais autores representam “vertente das mais ricas e sólidas da produção literária hoje”. E destaca ainda a relação que esses escritores estabelecem com as ciências: sociologia (Ernaux), história (Hartman), antropologia (Martin) e até física (Labatut).
Linguagens artísticas
Fernanda Bastos, uma das curadoras desta edição, afirma que boa parte dos autores convidados está “entre gêneros”. Não apenas as estrelas internacionais, mas também brasileiras que navegam entre linguagens artísticas, da poesia às artes visuais, como Lenora de Barros, Luciany Aparecida e Patrícia Lino.
Milena Britto acrescenta que o convite a tantos autores que “rasuram gêneros” nasceu do desejo de mostrar como a produção brasileira participa dos debates que mobilizam a literatura mundo afora. Já Pedro Meira Monteiro afirma ainda que a presença de autores que não se intimidam diante dos dilemas do real não indica subserviência da arte à política:
— Quando a Saidiya Hartman foi anunciada, uma pessoa comentou no Instagram da Flip que tinha saudade de quando o evento era literário e não político. Esse comentário é equivocado, mas aponta para a questão da expansão dos gêneros literários: para onde foi a narrativa? — diz, questionando qual será o caminho da literatura daqui a dez anos. — Ela vai estar nos podcasts? Na poluição do mundo digital? A necessidade de contar histórias vai continuar. Mas como? Por qual meio? Todo festival literário que preste e se preze vai ter que acompanhar essa explosão. Que venham as marés.