Merval Pereira
O Globo
O desfecho da eleição presidencial, com a vitória apertada do ex-presidente Lula, demonstra que o esforço para que se formasse uma frente ampla a favor da democracia era fundamental para que superássemos o perigo da continuidade de um projeto autoritário de poder que provocou o retrocesso do país em pontos fundamentais.
Com um Congresso de centro-direita, governadores dos três principais estados na oposição — Zema em Minas, Tarcísio em São Paulo e Cláudio Castro no Rio — e um país claramente cindido, o presidente eleito terá que montar um governo muito além do PT para atrair setores que, não sendo de extrema-direita, votaram em Bolsonaro por um antipetismo que só poderá ser superado se o novo governo der mostras de que veio para unir o país, e não para repetir erros do passado, nem usar o poder do governo para uma revanche política.
ADVERTÊNCIA DE LIRA – O presidente da Câmara, deputado Arthur Lira, um apoiador ferrenho do presidente Bolsonaro e comandante do Centrão, fez um discurso republicano, saudando o vencedor, mas deixou no ar uma advertência. Citou o novo Congresso eleito como favorável a reformas e de tendência centrista, prevenindo que o presidente eleito terá que negociar para aprovar seus projetos.
Lula disse em seu discurso de vitorioso que quiseram enterrá-lo vivo e ele ressuscitou. Não parece ter usado a imagem dramática para justificar uma revanche, mas tem uma visão de futuro mais aguda que muitos de seus correligionários, que lamentaram a campanha não ter ido mais para a esquerda.
Se tivesse ido, ou se o candidato não fosse Lula, com sua carga de história de vida que mais parece ter saído de uma ficção, provavelmente Bolsonaro teria sido reeleito pelas mesmas razões que o levaram ao governo em 2018, apesar de tudo o que houve de abusivo e antidemocrático.
PAÍS DIVIDIDO – A impressionante votação que Bolsonaro recebeu neste segundo turno mostra um país que ainda se divide com o antipetismo. Mas não é crível que esses milhões de brasileiros sejam de extrema-direita. É nesse espaço entre os extremistas de esquerda e de direita e entre os eleitores que buscam mais honestidade, menos radicalismo e mais equilíbrio que Lula pode buscar ampliar o apoio ao seu governo, fazendo dele um reflexo da verdadeira maioria dos cidadãos.
A eleição de Lula já se mostrou útil para incluir novamente o Brasil no mundo democrático ocidental. A imediata aceitação do resultado das urnas por líderes de diversos países, antes mesmo que Bolsonaro se dignasse a aceitar a derrota, mostrou uma preocupação internacional de evitar que uma eventual contestação por parte dos derrotados pudesse criar obstáculos à democracia.
O país retorna assim ao palco internacional como protagonista das políticas de preservação do meio ambiente, enfrentando a crise climática, tornando-se parceiro do mundo, não uma ameaça.
PEÇA DE MODERAÇÃO – O discurso do presidente eleito Lula foi uma peça de moderação, centrado na preocupação de união do país — “não existem dois Brasis” — destacando a importância da democracia, que foi o centro desta campanha, fundamental para sua vitória. A mobilização das autoridades institucionais, todas acatando o resultado das urnas, foi também uma vacina contra qualquer tentativa ao contrário.
Os presidentes da Câmara e do Senado, a presidente do STF e o presidente do Tribunal Superior Eleitoral chancelaram o resultado das urnas, irresponsavelmente colocadas sob suspeição na tentativa de tumultuar a eleição.
Lula disse, com propriedade, que venceu a máquina do Estado brasileiro utilizada abusivamente por Bolsonaro. Essa constatação deve lembrar a ele que só a venceu porque conseguiu unir em torno da democracia a pluralidade da sociedade brasileira, e terá que governar de acordo com essa realidade.