Por CLAUDEMIR GOMES
Durante quinze anos tivemos o prazer de desfrutar de uma gratificante convivência com Polão, um cachorro da raça Dachshund (o popular linguicinha). Sua morte nos deixou uma lacuna terrível. Jurei pra mim mesmo que não haveria outro no seu lugar. Mas acabei me rendendo aos pedidos da mulher, filhos e netos. Afinal, não existe família do eu sozinho. Um belo dia, Áurea Regina, que parecia sentir mais o peso da solidão, me chega em casa com um Shih-tzu, que foi logo batizado pelo neto – Guilherme – de Tito.
Tito nos devolveu a alegria que havia ido embora junto com Polão. Mais ainda, me trouxe de volta a realidade das ruas.
Logo cedo ele me chama para o passeio matinal, que consiste em uma volta no quarteirão. Espaço mais que suficiente para observar a crescente escalada da pobreza; a insensibilidade de uma sociedade que a cada dia está mais enclausurada nos seus edifícios, verdadeiras fortalezas equipadas de muros altos, cercas elétricas e guaritas com vidros blindados. A “burguesia” está menos sensível a população dos “invisíveis”.
Os “invisíveis” – prefiro tratá-los assim a miseráveis – representam uma população que aumenta a cada dia. São nômades. Não têm domicílio. Disputam espaços nas calçadas de casas comerciais protegidas por marquises para passarem a noite.
Na calçada da loja que vende camas e colchões, um casal em plena madorna, encobertos por papelões, é acordado pela buzina do ônibus que corta o silêncio da rua as 6h da manhã. Ele abre os olhos, mas ela segue bem aconchegada ao peito do seu amado. Observo que mesmo na miséria não se perde a ternura.
Alguns metros mais adiante, na calçada de uma agência bancária, um outro casal desmonta as tralhas que lhes serviram de abrigo durante a noite. Ela sorri e vem em direção a Tito, que lhe faz festa, levanta as patinhas dianteiras, no que ela me pede permissão para lhe pôr no colo. Depois, sempre sorrindo, comentou: “Eu já tive um cachorro”.
Seguimos nosso possei e chegamos a uma loja que vende móveis. Móveis caros e luxuosos, que contrastam com a realidade vivida por aqueles que dormem ali na calçada. Um monte de papelão e uma catinga de mijo sufocante. As fezes no canto da parede denunciam que ali, aquele espaço encoberto por algumas plantas de decoração, serve de latrina para “os invisíveis”.
Por serem nômades, a mudança de “inquilinos”, em determinadas calças acontece com frequência, mas alguns se mantém fiéis ao ponto. Todos me conhecem e conhecem a Tito, assim como os seguranças, os porteiros e uma leva de diaristas com que cruzamos todos os dias no nosso passeio matinal.
Só conhece a realidade das ruas quem anda nas ruas. De suas SUVs, cada vez mais robustas, luxuosas e seguras, os “senhores” não conseguem olhar para as calçadas, onde ratos e homens seguem numa convivência harmoniosa em pleno Século XXI.
Quando se vai comprar um apartamento, quanto mais alto o andar cobiçado, mais caro fica o imóvel. Afinal, quando mais alto você sobe, menos chance tem de enxergar a realidade em que vivem aqueles que pisam no chão.
Vale ressaltar que, a miséria galopa no metro quadrado mais caro do Recife.