‘O estrangeiro’, de Camus, faz 80 anos: o que você precisa saber sobre esse clássico da literatura

O escritor Albert Camus em 1944 — Foto: Divulgação

Por Bolívar Torres — O  Globo

Nesta quinta-feira, 19 de maio, “O estrangeiro” completa 80 anos. O clássico de Albert Camus foi escrito em circunstâncias completas, em pela Paris ocupada. Não demorou muito para se tornar um sucesso absoluto, com 11 milhões de cópias vendidas na França e tradução em quase 80 idiomas. Ícone cultural, o romance inspirou músicas de rock (“Killing an arab”, do grupo inglês The Smiths) e filmes de sucesso (“The man who wasn’t there”, dos irmãos Coen). Trata-se do terceiro título francófono mais vendido da história, atrás apenas de “O pequeno príncipe” e “Vinte mil léguas submarinas”.

A premissa é conhecida: um homem comum se depara com o absurdo da condição humana depois de cometer um crime quase inconscientemente após a morte de sua mãe. O protagonista Meursault é preso, julgado e condenado, e conta toda sua jornada em uma linguagem tão desencarnada quanto enigmática. Tudo é muito claro e ao mesmo tempo nada faz sentido.

Atenta a efeméride, o Grupo Record, que publica a obra de Camus no Brasil, vai reposicionar nas livrarias a sua 54º e mais recente edição do romance. A seguir, algumas curiosidades sobre o livro.

Abertura antológica

“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei”. A abertura de “O estrangeiro” é uma das mais famosas da literatura. Dificilmente ela seria lembrada hoje se o escritor tivesse iniciado a narrativa de uma forma mais óbvia, como, por exemplo, “Estou mal porque mamãe morreu hoje”. Em duas frases, Camus consegue expor a ambiguidade do narrador, e a falta de clareza de seus sentimentos. Logo de cara, o leitor percebe que se trata de um protagonista não-convencional e que sua lógica será difícil de ser seguida.

Por que “estrangeiro”?

Há diversas interpretações para o título do livro. O personagem principal pode ser visto como um “estrangeiro” por sua consciência esvaziada, uma aparente indiferença a tudo que acontece. Outra ideia é que Meursault é estranho à sua própria vida – nem ele entende suas ações. Por fim, o protagonista não deixa de ser um estrangeiro para o leitor, que o acompanha e até se solidariza com ele, mesmo sem nem sempre compreendê-lo. E isso em grande parte se dá pela sinceridade total do narrador, que expõe seus sentimentos sem nenhum tipo de pudor ou filtro.

Capa da primeira edição de "O estrangeiro" — Foto: Reprodução
Capa da primeira edição de “O estrangeiro” — Foto: Reprodução

Absurdo

“O estrangeiro” faz parte de uma tetralogia que Camus definiu como “ciclo do absurdo”, que inclui o ensaio “O mito de Sísifo” e as duas peças “Caligula” e “O mal-entendido”. “O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites”, escreveu o autor. Isso não significa, porém, que estas obras sejam uma demonstração do absurdo do mundo. Para Camus, absurdo é “o confronto entre o irracional e esse perturbado desejo de clareza que ressoa como um chamado nas profundezas do homem”, escreve ele em “O mito de Sísifo”.

Os vários Meursault

O nome Meursault foi composto pensando na fonética francesa das palavras morte (mort) e sol (soleil). Mas, antes do Meursault de “O estrangeiro”, existiu Patrice Mersault, personagem de “A morte feliz”, primeiro romance de Camus, que só foi lançado após a sua morte. Assim como seu quase homônimo, Mersault matava um homem e não sentia remorso por isso. Camus, porém, não ficou satisfeito com “A morte feliz” e abandonou o romance quase pronto. O problema, segundo o próprio, foi ter tentado juntar muitos assuntos ao mesmo tempo. Desse fracasso, nasceu “O estrangeiro”. Curiosamente, na primeira edição lançada na Argélia natal de Camus o personagem se chama Albert Meursault, criando uma confusão entre autor e criatura. Na edição francesa, ficou apenas Meursault.

Lançamento complicado

Camus escreveu o livro em um hotel modesto de Montmartre, na sombria Paris ocupada da Segunda Guerra. Ele levou dois meses para terminá-lo. Antes da publicação, que passou pelo crivo da censura alemã, os manuscritos quase se perderam nas diversas vezes viagens do autor entre França e Argélia. Em uma dessas viagens, o cofre em que eram transportados quase explodiu. Ao contrário do que se pensa, o livro não foi uma unanimidade ao ser lançado. Houve duas recepções, a da imprensa da Paris ocupada, controlada pelos alemães, e a da zona livre, controlada pelo governo colaboracionista de Vichy. Camus se decepcionou com algumas das críticas da zona livre. O crítico André Rousseau considerou o personagem de Mersault amoral. “Em uma França em que a poesia tem revelado força e esperanças, o romance parece ter o triste privilégio de preservar o passivo espiritual e o desperdício moral”, escreveu no jornal Figaro. Até mesmo Jean Grenier, professor de Camus, criticou o livro por sua semelhança com Kafka. Por outro lado, Jean-Paul Sartre reconheceu que o romance trazia algo novo e diferente. Em 1944, dois anos após o seu lançamento, o livro já havia sido canonizado. Roland Barthes o definiu como “o primeiro clássico da pós-guerra”.

Camus lança "O estrangeiro" em 1942. — Foto: Divulgação

Camus lança “O estrangeiro” em 1942. — Foto: Divulgação

Colonialismo

Ainda que “O estrangeiro” seja visto no mundo como uma metáfora da condição humana, críticos não costumam ignorar o contexto histórico em que foi escrito. A Argélia do livro é a Argélia Colonial em que Camus cresceu. Meursault é um pied-noir, como são chamados os franceses de ascendência europeia instalados no país. Chama a atenção o fato que os árabes do livro não são nomeados e aparecem como meros figurantes da vida dos pieds-noirs. Em “O caso Meursault”, o argelino Kamel Daoud compôs uma resposta pós-moderna e decolonial ao romance. Lançado no Brasil pela Biblioteca Azul, o livro reconstrói o clássico de Camus sob o ponto de vista do árabe assassinado por Meursault. Daoud devolve a identidade do personagem sem nome, assim como o protagonismo argelino. Autora de “Looking for the stranger”, uma biografia de “O estrangeiro”, a americana Alice Kaplan, por sua vez, defende a escolha de Camus; para ela, o escritor não deu nome ao personagem para evidenciar o racismo da sociedade (vale lembrar que o romance é escrito na primeira pessoa). Camus teria sido influenciado pelo romance “The postman always rings twice” (1934), de James M. Cain, em que a vítima é identificada como simplesmente “O Grego”.