Terceiro título francófono mais vendido no mundo, romance virou ícone do absurdo
Nesta quinta-feira, 19 de maio, “O estrangeiro” completa 80 anos. O clássico de Albert Camus foi escrito em circunstâncias completas, em pela Paris ocupada. Não demorou muito para se tornar um sucesso absoluto, com 11 milhões de cópias vendidas na França e tradução em quase 80 idiomas. Ícone cultural, o romance inspirou músicas de rock (“Killing an arab”, do grupo inglês The Smiths) e filmes de sucesso (“The man who wasn’t there”, dos irmãos Coen). Trata-se do terceiro título francófono mais vendido da história, atrás apenas de “O pequeno príncipe” e “Vinte mil léguas submarinas”.
A premissa é conhecida: um homem comum se depara com o absurdo da condição humana depois de cometer um crime quase inconscientemente após a morte de sua mãe. O protagonista Meursault é preso, julgado e condenado, e conta toda sua jornada em uma linguagem tão desencarnada quanto enigmática. Tudo é muito claro e ao mesmo tempo nada faz sentido.
Atenta a efeméride, o Grupo Record, que publica a obra de Camus no Brasil, vai reposicionar nas livrarias a sua 54º e mais recente edição do romance. A seguir, algumas curiosidades sobre o livro.
Abertura antológica
“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei”. A abertura de “O estrangeiro” é uma das mais famosas da literatura. Dificilmente ela seria lembrada hoje se o escritor tivesse iniciado a narrativa de uma forma mais óbvia, como, por exemplo, “Estou mal porque mamãe morreu hoje”. Em duas frases, Camus consegue expor a ambiguidade do narrador, e a falta de clareza de seus sentimentos. Logo de cara, o leitor percebe que se trata de um protagonista não-convencional e que sua lógica será difícil de ser seguida.
Por que “estrangeiro”?
Há diversas interpretações para o título do livro. O personagem principal pode ser visto como um “estrangeiro” por sua consciência esvaziada, uma aparente indiferença a tudo que acontece. Outra ideia é que Meursault é estranho à sua própria vida – nem ele entende suas ações. Por fim, o protagonista não deixa de ser um estrangeiro para o leitor, que o acompanha e até se solidariza com ele, mesmo sem nem sempre compreendê-lo. E isso em grande parte se dá pela sinceridade total do narrador, que expõe seus sentimentos sem nenhum tipo de pudor ou filtro.
Absurdo
“O estrangeiro” faz parte de uma tetralogia que Camus definiu como “ciclo do absurdo”, que inclui o ensaio “O mito de Sísifo” e as duas peças “Caligula” e “O mal-entendido”. “O absurdo é a razão lúcida que constata os seus limites”, escreveu o autor. Isso não significa, porém, que estas obras sejam uma demonstração do absurdo do mundo. Para Camus, absurdo é “o confronto entre o irracional e esse perturbado desejo de clareza que ressoa como um chamado nas profundezas do homem”, escreve ele em “O mito de Sísifo”.
Os vários Meursault
O nome Meursault foi composto pensando na fonética francesa das palavras morte (mort) e sol (soleil). Mas, antes do Meursault de “O estrangeiro”, existiu Patrice Mersault, personagem de “A morte feliz”, primeiro romance de Camus, que só foi lançado após a sua morte. Assim como seu quase homônimo, Mersault matava um homem e não sentia remorso por isso. Camus, porém, não ficou satisfeito com “A morte feliz” e abandonou o romance quase pronto. O problema, segundo o próprio, foi ter tentado juntar muitos assuntos ao mesmo tempo. Desse fracasso, nasceu “O estrangeiro”. Curiosamente, na primeira edição lançada na Argélia natal de Camus o personagem se chama Albert Meursault, criando uma confusão entre autor e criatura. Na edição francesa, ficou apenas Meursault.
Lançamento complicado
Camus escreveu o livro em um hotel modesto de Montmartre, na sombria Paris ocupada da Segunda Guerra. Ele levou dois meses para terminá-lo. Antes da publicação, que passou pelo crivo da censura alemã, os manuscritos quase se perderam nas diversas vezes viagens do autor entre França e Argélia. Em uma dessas viagens, o cofre em que eram transportados quase explodiu. Ao contrário do que se pensa, o livro não foi uma unanimidade ao ser lançado. Houve duas recepções, a da imprensa da Paris ocupada, controlada pelos alemães, e a da zona livre, controlada pelo governo colaboracionista de Vichy. Camus se decepcionou com algumas das críticas da zona livre. O crítico André Rousseau considerou o personagem de Mersault amoral. “Em uma França em que a poesia tem revelado força e esperanças, o romance parece ter o triste privilégio de preservar o passivo espiritual e o desperdício moral”, escreveu no jornal Figaro. Até mesmo Jean Grenier, professor de Camus, criticou o livro por sua semelhança com Kafka. Por outro lado, Jean-Paul Sartre reconheceu que o romance trazia algo novo e diferente. Em 1944, dois anos após o seu lançamento, o livro já havia sido canonizado. Roland Barthes o definiu como “o primeiro clássico da pós-guerra”.
Camus lança “O estrangeiro” em 1942. — Foto: Divulgação
Colonialismo
Ainda que “O estrangeiro” seja visto no mundo como uma metáfora da condição humana, críticos não costumam ignorar o contexto histórico em que foi escrito. A Argélia do livro é a Argélia Colonial em que Camus cresceu. Meursault é um pied-noir, como são chamados os franceses de ascendência europeia instalados no país. Chama a atenção o fato que os árabes do livro não são nomeados e aparecem como meros figurantes da vida dos pieds-noirs. Em “O caso Meursault”, o argelino Kamel Daoud compôs uma resposta pós-moderna e decolonial ao romance. Lançado no Brasil pela Biblioteca Azul, o livro reconstrói o clássico de Camus sob o ponto de vista do árabe assassinado por Meursault. Daoud devolve a identidade do personagem sem nome, assim como o protagonismo argelino. Autora de “Looking for the stranger”, uma biografia de “O estrangeiro”, a americana Alice Kaplan, por sua vez, defende a escolha de Camus; para ela, o escritor não deu nome ao personagem para evidenciar o racismo da sociedade (vale lembrar que o romance é escrito na primeira pessoa). Camus teria sido influenciado pelo romance “The postman always rings twice” (1934), de James M. Cain, em que a vítima é identificada como simplesmente “O Grego”.