O dinheiro que o Brasil deixou de arrecadar em 2020 em impostos não pagos por multinacionais e milionários que fazem uso de paraísos fiscais seria suficiente para viabilizar o Auxílio Brasil de R$ 400 prometido pelo governo, revela estudo realizado pela Rede de Justiça Fiscal (Tax Justice Network), organização independente criada em 2003 no Reino Unido e que faz campanha por mudanças nos sistemas tributários globais.
Paraísos fiscais são países ou territórios que oferecem impostos baixos para atrair capital de pessoas ou empresas em busca de esconder recursos no exterior ou pagar menos impostos do que em seus países de origem.
São utilizados, por exemplo, pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, conforme revelado por vazamentos do projeto Pandora Papers, em outubro deste ano — ambos negam irregularidades.
Segundo o estudo lançado na terça-feira (16/11) pela Rede de Justiça Fiscal, e divulgado em primeira mão à BBC News Brasil, o Brasil perdeu US$ 8,17 bilhões (cerca de R$ 44,6 bilhões ao câmbio atual) em impostos em 2020.
O valor cobriria a quase totalidade dos R$ 47 bilhões necessários para reajustar o Bolsa Família em 20%, ampliá-lo para 17 milhões de famílias e bancar o auxílio temporário para que todos os beneficiários recebam um mínimo de R$ 400 por mês até dezembro de 2022.
O montante também seria suficiente para vacinar toda a população do país duas vezes, segundo cálculo da Rede de Justiça Fiscal.
A pesquisa surge em um momento em que o Brasil discute formas de expandir gastos sociais através da reformulação do Bolsa Família, que será rebatizado como Auxílio Brasil.
O governo do presidente Jair Bolsonaro vem tentando financiar essa reformulação com uma mudança no Orçamento que permita mais gastos.
Nas últimas semanas, avançou no Congresso brasileiro uma proposta para flexibilizar o pagamento de precatórios (dívidas da União com decisão judicial definitiva) e para alterar o cálculo do teto de gastos.
Essas mudanças provocaram polêmicas em Brasília e ruídos no mercado financeiro, com desvalorização do real e queda no índice Ibovespa. Críticos ao governo dizem que o país não tem condições de aumentar gastos sociais sem que haja um corte de receitas — pois isso poderia gerar inflação e desaceleração econômica no futuro.
A pesquisa realizada pela Rede de Justiça Fiscal em parceria com a Internacional de Serviços Públicos (ISP), uma federação sindical mundial que representa trabalhadores do setor público, sugere que o Brasil poderia aumentar sua arrecadação para viabilizar gastos sociais adotando outras estratégias, como o combate à elisão e evasão fiscal.
Ainda assim, para que isso seja viável, seria necessário mudar a regra do teto de gastos, que atualmente limita o aumento das despesas do governo à inflação do ano anterior. Além disso, o combate aos paraísos fiscais é limitado em âmbito nacional, dependendo de acordos internacionais para ser possível.
Impostos perdidos no mundo
Conforme o relatório “Estado Atual da Justiça Fiscal”, em todo o mundo, foram US$ 483 bilhões (R$ 2,6 trilhões) em impostos perdidos em 2020, sendo US$ 312 bilhões devido à transferência legal ou ilegal de lucros de multinacionais para paraísos fiscais e US$ 171 bilhões não pagos por milionários que escondem ativos e rendimentos não declarados no exterior.
Essa é a segunda edição do levantamento, que se tornou possível graças a um acordo da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), que obrigou multinacionais com sede em países do grupo e receita acima de 750 milhões de euros (R$ 4,7 bilhões) a publicarem relatórios financeiros detalhados com relação aos países onde operam.
Na edição anterior, referente a 2019, o valor das perdas fiscais foi estimado em US$ 427 bilhões para o mundo e US$ 14,9 bilhões para o Brasil.
Segundo os responsáveis pelo relatório, a redução no valor da perda fiscal brasileira entre 2019 e 2020 — da ordem de 45% — pode ser explicada pela desaceleração da economia devido à pandemia; perda de valor da moeda brasileira, que reduz o montante reportado em dólares; e possível saída de empresas do universo avaliado, devido à perda de receitas.
‘Dinheiro desperdiçado’
Para Gabriel Casnati, coordenador de projetos internacionais da ISP (Internacional de Serviços Públicos, uma federação sindical mundial que representa trabalhadores do setor público), entidade parceira da Rede de Justiça Fiscal na realização do estudo, os dados revelam o quanto o Brasil abre mão de recursos que poderiam estar sendo destinados para políticas públicas, como programas de transferência de renda para a população mais pobre.
“Estamos num contexto de aumento da desigualdade social e de perda da capacidade do Estado de investir. Isso já vinha de um processo anterior à pandemia, mas com a crise sanitária ficou ainda mais claro”, disse Casnati à BBC News Brasil.
“No momento atual, o debate público se centra na busca de recursos para políticas sociais e, nesse sentido, esses US$ 8,17 bilhões são um dinheiro completamente desperdiçado e que deveria estar a serviço do país e ser empregado em políticas públicas”, defende o coordenador da ISP.
“Num contexto de austeridade, de estagnação do crescimento econômico, de pobreza e fome aumentando, é um dinheiro que seria muito relevante, sem ter que aumentar a carga de impostos ou recorrer a expedientes como dar calote em precatórios.”
Para Alex Cobham, economista e executivo-chefe da Rede de Justiça Fiscal, se as empresas e pessoas ricas pagassem devidamente seus impostos no Brasil e esses recursos fossem destinados a políticas sociais, isso teria efeito relevante na redução da desigualdade social.
“Quando se distribui do topo para a base, essa é a mais poderosa forma de transferência de renda possível em termos de redução da desigualdade”, diz Cobham. “É também muito bom para a economia, porque os ricos não tendem a gastar muito da sua renda, enquanto os mais pobres recirculam tudo o que recebem. Então o efeito multiplicador é muito grande.”
‘Conflito de interesses’
Para Casnati e Cobham, os recursos mantidos em offshores por Guedes e Campos Neto não são um problema exclusivo do Brasil, mas revelam a dificuldade na elaboração de políticas para inibir a prática da elisão e evasão fiscal. Essa dificuldade acontece, segundo eles, porque as mesmas elites que elaboram as leis são aquelas que não querem pagar mais impostos.
Offshores são empresas e contas bancárias abertas em locais onde há menor tributação. Elisão fiscal é o uso de manobras lícitas para evitar o pagamento de impostos, já a evasão tem o mesmo objetivo, mas por meios ilícitos.
“Não é necessariamente ilegal ter uma offshore, mas o próprio Paulo Guedes discutiu esse ano legislação sobre o repatriamento de recursos de brasileiros em paraísos fiscais e esse ponto acabou ficando fora da reforma tributária”, exemplifica Casnati. “Evidentemente é um conflito de interesses gravíssimo.”
Para Cobham, as revelações dos Pandora Papers reforçam a importância da transparência dos dados desses valores transacionados internacionalmente
Ele defende que todas as multinacionais deveriam ter de reportar ao público suas atividades financeiras nos diversos países em que atuam (e não apenas as com sede na OCDE e receita acima de 750 milhões de euros), que é preciso publicidade sobre os sócios de todas as empresas, fundos e parcerias e que as autoridades fiscais dos diversos países precisam trocar informações entre si.
Imposto único global
Os representantes da ISP e da Rede de Justiça Fiscal defendem que o acordo negociado no âmbito da OCDE e aprovado em outubro por 136 países — incluindo o Brasil — para criação de um imposto mínimo global sobre multinacionais é insuficiente para resolver o problema.
Pelo acordo, uma alíquota mínima de 15% será aplicada a partir de 2023 a multinacionais com faturamento anual acima de 20 bilhões de euros (R$ 128 bilhões) e margem de lucro superior a 10%. A expectativa da OCDE é de que isso gere arrecadação anual de US$ 150 bilhões (R$ 830 bilhões).
“Da forma como esse imposto foi aprovado, ele vai beneficiar mais os países desenvolvidos — os países donos das empresas”, diz Casnati.
Casnati e Cobham defendem que as discussões sobre a tributação internacional de empresas devem sair do âmbito da OCDE, organização que reúne, principalmente, as maiores economias mundiais, para a ONU (Organização das Nações Unidas); que a alíquota deve ser revista para patamar mais elevado — há quem defenda 21% ou até 25%; e que o critério de repartição das receitas geradas considerem fatores como número de funcionários, de vendas e de plantas produtivas, para que a distribuição seja maior aos países onde os lucros são gerados.