Por Demétrio Magnoli – O Globo
O juiz Alexandre de Moraes, do STF, emitiu ordem de prisão contra Allan dos Santos, um pistoleiro virtual a serviço do marketing de ódio do bolsonarismo. Foi além, mandando bloquear todos os canais do atirador de aluguel nas redes sociais. As justificativas oferecidas pelo magistrado para a censura irrestrita emanam de uma releitura intolerável da Constituição.
As medidas determinadas pelo juiz inscrevem-se no inquérito das fake news, deflagrado em março de 2019. Mais de 30 meses depois, a investigação prossegue inconclusa, produzindo apenas resultados fragmentários. Tudo indica que o STF a utiliza como ferramenta de contenção política de Bolsonaro: uma tentativa de cercear o bombardeio do governo à democracia. Muitos aplaudem a iniciativa, simulando ignorar que a função judicial é aplicar as leis, não usá-las para gerar efeitos no tabuleiro político. No percurso, celebram uma reinterpretação constitucional que atenta contra a liberdade de expressão.
Gilmar Mendes ensaiou afirmar, mais de uma vez, que temos uma “democracia militante” — um contrato político em que é vedada a opinião antidemocrática. Nada mais falso. A Alemanha é uma “democracia militante”, pois sua Constituição foi desenhada sob a inspiração do “nunca mais”, ou seja, como ferramenta para impedir o retorno do nazismo. O trauma singular do passado legitima o veto a partidos extremistas e a certos discursos que, mesmo sem estimular diretamente a violência, reciclam o exterminismo nazista.
O Brasil não é a Alemanha. Experimentamos ditaduras nefastas, mas nada parecido com o regime de Hitler. Por aqui, os únicos limites à liberdade de expressão são a conclamação direta à violência (contra indivíduos, grupos ou instituições) e os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação). O remédio legal para os segundos é o processo judicial. Censura e prisão preventiva podem ser cabíveis para a primeira. Contudo a ordem genérica de censura de Alexandre de Moraes fundamenta-se na doutrina equivocada da “democracia militante”.
Nossa Constituição não permite criminalizar a opinião política antidemocrática. Idiotas saudosos do regime militar têm o direito de escrever que a nação precisa retornar aos tempos da ditadura. Comunistas incuráveis podem, legalmente, sustentar ideias imbecis como a substituição do Congresso por um conselho supremo de tipo soviético. Allan dos Santos é insignificante: um respingo casual do córrego poluído do bolsonarismo. A censura ditada pelo STF, pelo contrário, cria um precedente perigoso.
Anos atrás, sob o governo Lula, um enxame de blogueiros chapa-branca patrocinados pelo Minha Casa Minha Vida e por empresas estatais exigiam, com a regularidade de um relógio cuco, o “controle social da mídia” (a censura dos críticos do lulopetismo). Os blogueiros de aluguel também derramavam-se em elogios a regimes autoritários “do bem”, como a Cuba castrista e a Venezuela chavista. Felizmente, o STF jamais tentou calar as opiniões políticas antidemocráticas deles (e, infelizmente, o Ministério Público nunca denunciou o desvio de recursos públicos para financiar propaganda político-partidária). O precedente estabelecido por Alexandre de Moraes poderia, no futuro, funcionar como instrumento de repressão contra qualquer um, à direita ou à esquerda. Sempre em nome do bem.
Censura judicial não deve ser confundida com restrições ao discurso definidas pelas redes sociais. O Facebook, plataforma preferencial de ditaduras engajadas em massacres e limpezas étnicas, suspendeu a conta de Donald Trump. O Google derrubou do YouTube a live criminosa na qual Bolsonaro associava vacinas anti-Covid à Aids. São decisões, certas ou erradas, de empresas privadas — e, ainda, episódios que deveriam provocar um debate sério sobre o controle oligopolista das redes sociais. A ordem de Alexandre de Moraes é outra coisa: censura estatal inconstitucional.
Allan dos Santos decretaria a censura universal se pudesse. O STF não tem o direito de adotar os critérios dele para puni-lo. Nossa Constituição não milita.