Por Antonio Magalhães*
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
O poeta pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968) escreveu “O Bicho” em 1947 como dura crítica à realidade brasileira da época. O bicho/homem que escandalizou o poeta continua fazendo parte da tragédia nacional na segunda década do século 21. Vítima da desigualdade social, da insegurança alimentar, da falta de moradia, mazelas que nenhum governante nacional, estadual, municipal conseguiu resolver.
O vídeo que viralizou nas redes sociais de algumas mulheres vasculhando o caminhão de lixo em Fortaleza, Ceará, não traz nenhuma novidade para os habitantes das grandes cidades desse país. Todas as noites carroças circulam pelas ruas do Recife e adjacências recolhendo lixo reciclável que hoje é um meio de vida para catadores autônomos ou associados em cooperativas.
O estardalhaço dos “espantados do bem” com as mulheres cearenses, supostamente à cata de alimentos – fato não comprovável diante da distância da câmera do celular da ação -, passou a ser foco das redes sociais com o intuito claro e repetido com intensidade de atacar o Governo Federal sob a alegação que a pobreza agora buscava o lixo para se alimentar.
Não se pode desconhecer que a pandemia do vírus chinês agravou a situação econômica do país e principalmente das classes menos favorecidas. Escancarou, mais uma vez, o péssimo quadro da desigualdade social e econômica no Brasil.
Durante a primeira onda do coronavírus, no ano passado, mais de 30% dos 211,8 milhões de residentes nos 5.570 municípios brasileiros tiveram de ser socorridos pelo auxílio emergencial. De acordo com o IBGE, entre 67 e 68 milhões de brasileiros foram atendidos na primeira fase, com R$ 600 por três meses, e cerca de 57 milhões na segunda rodada, a partir de setembro, quando o auxílio foi reduzido para R$ 300.
Ao longo da pandemia, os repasses do Governo Federal aos Estados e municípios somaram aproximadamente R$ 600 bilhões investidos em ações de enfrentamento ao coronavírus. Só com o Auxílio Financeiro Emergencial, um benefício pago diretamente às pessoas em situação de vulnerabilidade, foram encaminhados R$ 382 bilhões. Além de outras verbas beneficiando empresas para manterem os empregos.
Foram ações emergenciais que apenas amenizaram o problema numa determinada situação. A implantação agora em novembro do Auxílio Brasil pelo Governo Federal, pagando mensalmente R$ 400 a 17 milhões de famílias brasileiras, em substituição ao Bolsa Família, faz parte de um programa de renda mínima sempre abaixo do necessário. Só um pouco de alívio.
Mas o que estão fazendo os governantes estadual e municipal para aliviar a extrema carência que se vê na favelização crescente nas ruas do Recife. Por exemplo, a 50 metros do Palácio do Campo das Princesas, sede do Governo de Pernambuco, onde se consome os melhores alimentos e vinhos, a rua do Imperador abriga uma micro cidade de tendas e papelões de vulneráveis pernambucanos.
Qual a ação estadual ou municipal para recolher e atender esse pessoal. Do governo estadual nada se sabe. Da prefeitura da Capital, outra incógnita, mas se sabe que ela vai fazer uma reforma na orla de Boa Viagem e uma parceria público-privada, com investimentos de R$ 70 milhões para a instalação nas ruas do Recife de 100 relógios digitais com reconhecimento facial dos passantes.
Talvez só assim as autoridades possam ver virtualmente de perto faces de famintos e desassistidos, o bicho/homem que fala Manuel Bandeira. Do outro lado da tela estarão o bicho/burro, insensível ao que todos veem, e os “espantados do bem” que fazem da miséria alheia uma arma de ataque ao adversário político. Quando esses “espantados do bem” tiveram a chance de agir, pouco fizeram. Como bem definiu o jornalista Marcelo Tognozzi, são “os gigolôs da pobreza”. É isso.
*Jornalista