Henrique Gomes Batista
O Globo
Um dos piores dias da democracia americana. Assim será marcado o 6 de janeiro de 2021. A invasão ao Congresso, que segundo analistas foi o ápice da tentativa de golpe que o presidente Donald Trump tenta articular desde que perdeu as eleições, marcará o país e pode sinalizar o fim do capital político do republicano, que agora é um forte candidato a entrar para a História como o pior presidente dos Estados Unidos.
“Vimos um golpe contra a democracia, algo totalmente vergonhoso, até os republicanos estão reconhecendo isso desta maneira. E tudo isso é muito ruim para Donald Trump. Ele brincou com fogo e agora sua casa está se incendiando”, diz ao O Globo Erick Langer, professor de História e Ciências Políticas da Universidade Georgetown, em Washington.
PIOR PRESIDENTE – “Trump vai ser visto como o pior presidente dos Estados Unidos. Ele queria ser reconhecido como um presidente no nível de Ronald Reagan, que mudou profundamente o país, mas depois de hoje [quarta-feira] está perdido”, diz.
O dia já seria ruim para Trump. Desde terça-feira estava claro, com os primeiros resultados das eleições para o Senado na Geórgia, que seu apoio se tornou tóxico. A vitória dos democratas no antigo feudo conservador era uma questão de tempo para se consumar, o que foi confirmado na tarde de ontem. A guinada impensável até pouco tempo no estado sulista garantirá aos democratas o controle simultâneo da Casa Branca, da Câmara dos Representantes e do Senado, um caminho e tanto para as políticas de Joe Biden.
Isso coincidiu com o que parecia ser a última batalha de Trump em sua cruzada sem provas contra os resultados das eleições de novembro. O Congresso deveria concluir na quarta-feira o processo eleitoral com o reconhecimento formal de Biden como presidente eleito.
FIM IMPREVISÍVEL – Depois que o vice-presidente Mike Pence e o líder republicano do Senado, Mitch McConnell, se negaram a participar do golpe de Trump, se recusando a ignorar o desejo de 81 milhões de americanos que votaram no democrata e a rasgar as leis americanas, o impensável aconteceu. Um discurso inflamado de Trump serviu de estopim para a inédita invasão ao Congresso.
“Trump vem tentando um golpe desde novembro. O principal esforço foi usar os tribunais para tentar derrubar uma eleição democrática que ele perdeu. Em seguida, ameaçou funcionários eleitorais e encorajou os senadores e representantes republicanos a tentarem derrubar os resultados das eleições. Infelizmente, alguns deles (embora, felizmente, uma minoria) concordaram com essa tentativa de golpe. E a tentativa de golpe deu uma guinada muito feia”, avalia Scott Mainwaring, professor da Universidade Notre Dame, em Indiana.
IMPEACHMENT – Os desdobramentos do ato inédito de violência e fúria em um dos símbolos da democracia americana ainda são difíceis de serem previstos. Há quem defenda o impeachment imediato de Trump, com base na 25ª emenda da Constituição, que trata da incapacidade do presidente para governar.
Outros avaliam que aumentaram as chances de ele ser processado e acabar, em outra marca histórica, na cadeia. Muitos pensavam que, até então, Biden não adotaria uma posição revanchista em seu propósito de unir o país e não dar palanque a Trump. Porém os fatos mudaram abruptamente.
“Biden estará sob pressão para tomar medidas e evitar esse tipo de comportamento no futuro, e haverá pressão para responsabilizar Trump”, pondera David Schultz, professor de política da Hamline University, no Minnesota. “Isso agora apenas deslegitima Trump e acelera uma grande luta no Partido Republicano por seu futuro”, acrescenta.
REALIDADE PARALELA – Entretanto, mesmo as imagens de invasão, para ele, não aniquilariam totalmente o poder político de Trump: “Acredito que os eventos repercutirão mal para 70% do eleitorado americano. Ainda assim, a maior parte da base de Trump não vive em um mundo de realidade, fatos ou ciência, e eles acreditam em teorias de conspiração bizarras. Grande parte da base de núcleo duro de Trump apoiará ou pelo menos aceitará o vandalismo”, observa Mainwaring.
Segundo ele, isso será um desafio para Biden, que sabe que terá que lidar com uma ala direita “paramilitar e terrorista” revigorada. Por outro lado, avalia, a invasão ao Congresso pode ser revertida em capital político para Biden: “Fica mais fácil para Biden acabar com a herança de Trump, ainda mais com o controle do Senado e da Câmara de Representantes. Os eventos de ontem vão fortalecer Biden, que terá a autoridade moral de tentar mudar todas as políticas de Trump. Tomara que Biden consiga aproveitar seu momento para avançar o mais rápido possível na sua agenda de retomada e reconstrução dos EUA, tentando reduzir as divisões americanas”.
INSPIRAÇÃO NEGATIVA – Mais do que nunca, segundo os especialistas, isso é importante, não apenas para o país, mas para o mundo. As imagens chocantes podem deixar feridas e inspirar golpistas e líderes de tendência ditatorial pelo mundo.
“O que aconteceu também prejudica a reputação internacional dos EUA em termos de autoridade moral como democracia. Espera-se que o país aprenda com isso”, afirma Schultz.