Por Urariano Mota
As palavras que te falei antes, que eram antecedidas pela dedicatória “ para Luanda e para quem se tornar refém da sua beleza”, eu as retomo hoje.
Um belo dia, desses belos dias em que não sabemos o que nos espreita, nem o que nos aguarda na noite, no futuro ou na sua vedação, um belo dia, num desses belos dias que são belos somente pelo pouco mal que fazemos, um belo dia, em manhã semelhante à de hoje eu te disse, eu te escrevi quando tinhas 17 anos:
Se o coral é vermelho, há quem se espante. Se as pétalas em sua alquimia, em seu laboratório e cornucópia sufocam-nos, há quem se espante. Um raio que caísse agora e nos matasse, neste exato instante em que escrevo “um raio que caísse agora…”, muita gente disso ficaria espantado. Sem palavras, no entanto, deveríamos ficar ante este maior espanto: um desabrochar que da flor guarda a semelhança deste verbo, desabrochar, um ser, que é uma pessoa mais importante que a preservação das florestas amazônicas, mais séria e organizada que a sobrevivência de todo pantanal, das garças às borboletas, das rãs que pulam no rio aos jacarés que passeiam com pássaros a bordo, uma senhorita mais fundamental que a sobrevivência nossa, dos chineses aos esquimós, dos mongóis aos europeus, dos negros aos caucasianos, por que disso ninguém se espanta?
E insatisfeito, despudorado, sem dar importância ao que outros diriam, acrescentei:
Se o tempo parasse agora, nesta exata clara manhã, se a orquídea fosse a mesma orquídea hoje e sempre, se o movimento das pétalas, se as cores das macias pétalas, se as formas e os perfumes e o frescor das pétalas fossem eternas, se este encanto para os olhos fosse imorredouro, ah, nem assim a orquídea, a rara flor do campo atingiria a graça do ser que és, menina que deixas a infância.
Pois saibas que anos depois, poucos para mim, infinitos para ti, saibas que depois dessa imensa infinitude o meu amor mudou. Nada é estático, tudo está em ebulição, bem sabes. Mas é também da natureza viva, das coisas vivas, que a transformação tenha um caráter e um sentido, algo como uma predestinação, se por predestinação podemos entender o futuro do embrião, que sempre está em mudança. Em poucas palavras, senhorita, o meu amor mudou, mas guarda e preserva um caráter que eu não sonhava naquele belo dia, quando nada adivinhava da noite futura. Ele tem e guarda uma característica que agora compreendo: é amor esquisito e raro, porque amadurece e cresce com os teus anos. De sorte e de forma que bem podemos dizer, predizer, ver e sentir: quando eu tiver 100 anos, e tu, Luanda, 63: sabes o que dirão o que nos cercam, os que nos cercarão? Imagina, porque sei agora os rumores de toda a gente:
– Dizem por aí que são pai e filha, mas todos sabem que não passam de dois bons e velhos companheiros.
Por isso, antes desse remoto futuro, concluo agora como há infinitos outros anos concluí:
naquele dia do teu aniversário, pediste-me primeiro Neruda. Fiquei contente, exultei. Depois, mais prática, achaste melhor ganhar um par de sapatos. Minha resposta foi um silêncio. Os sapatos se gastam, eu não te disse, porque talvez eu não fosse compreendido. Nada te dei. Agora espero que ao fim destas linhas me compreendas, porque assim te saúdo:
Luanda de Angola, Luanda dos negros, Luanda de todas as raças, esta canção é o presente que te fiz na força dos teus jovens anos.