Na condução dos negócios do Estado, segundo nossas leis, deveria imperar o princípio da impessoalidade. O homem cordial, porém, não tem uma constituição mental compatível com tais princípios
Pouco surpreenderá aqueles que acompanharam a trajetória de Jair Bolsonaro até 2018 a afirmação de que seu governo tem dado uma atualidade espantosa à mais famosa contribuição de Sergio Buarque de Holanda para o pensamento brasileiro: o “homem cordial”. Bolsonaro e seu entourage são encarnações quase ideais da mentalidade descrita pelo historiador em seu livro de estreia, Raízes do Brasil (1936).
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Como uma demonstração exaustiva tomaria proporções indevidas, ofereço alguns indícios exemplares, escolhidos quase ao acaso. Frequentemente acompanhado em compromissos oficiais por algum de seus três filhos adultos, o presidente se refere às relações públicas que mantém com seus subordinados e associados como “namoros” ou “casamentos”. Seu ministro de Estado da Educação resolve pessoalmente os problemas de cidadãos que pedem sua ajuda pelo Twitter. A perguntas de outros usuários da mesma rede social, o mesmo ministro responde com insultos e ironias agressivas. Mais recentemente, a Secretária de Cultura do governo declarou não ter se manifestado sobre o falecimento de Aldir Blanc porque o músico não era de suas relações pessoais. O que há de cordial em tudo isso? Cordial, isto é, relativo ao coração, não deveria ser algo um pouco mais simpático?
Do ponto de vista das relações pessoais, sim. A já mencionada Secretária de Cultura, por exemplo, se refere ao presidente como um homem doce. Talvez entre, nesse parecer, alguma verdade empírica. Mesmo que Bolsonaro tenha dito a uma deputada que ela não merecia ser estuprada por ser, em sua opinião, feia demais para isso, o convívio que ele terá tido com Regina Duarte – até recentemente, pelo menos – pode ter sido perfeitamente agradável.
A cordialidade é uma virtude familiar. Ela é a lógica que rege, conforme a lapidar formulação de Raízes do Brasil, “os laços de sangue e de coração”. Num país de formação difícil e violenta, onde o Estado praticamente não se fazia sentir, a não ser como presença importuna, a família conservou um prestígio e uma preponderância na vida nacional que, noutros países, são coisas de um passado remoto. Não admira que, como disse Sergio Buarque, “as relações que se criam na vida doméstica” tenham fornecido “o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós”.
Cordiais nós somos, ou deveríamos ser, com nossa família estendida. Fora dela, na esfera pública, espera-se uma atitude mais comedida e racional. Na condução dos negócios do Estado, segundo nossas leis, deveria imperar o princípio da impessoalidade. O homem cordial, porém, não tem uma constituição mental compatível com tais princípios. Ao propor a cordialidade como metáfora para a mentalidade brasileira, Sergio Buarque ecoa Hegel, para quem a “lei do coração” precisa abandonar a obsessão unilateral de sua singularidade para se superar e alcançar uma compreensão menos egocêntrica do mundo ético, que leve em conta e existência de outros corações que não o próprio (Fenomenologia do Espírito, §367-380). Nesse caso, seria preciso superar uma visão de mundo governada pelos afetos – pelo amor, mas também pelo ódio. O político “cordial” não apenas contraria os princípios éticos esperados de autoridades do Estado, mas manifesta, além disso, uma radical incompreensão de qualquer ideia de impessoalidade na esfera pública. Não há, em seu horizonte intelectual, a ideia de uma república em sentido forte. Quando se quer fazer o bem, fazem-se favores a indivíduos. Não há associações políticas, mas “namoros” e “casamentos”. Nas “separações” públicas, como nas privadas, aflorarão, naturalmente, os afetos e comportamentos negativos correspondentes.
Nada disso é novo. A cordialidade é daqueles temas que, de tempos em tempos, ciclicamente, voltam a assombrar a vida brasileira. Quando pensamos que o homem cordial se tornou, finalmente, aquele “pobre defunto” que Sergio Buarque acreditou ter enterrado já em 1947 em carta a Cassiano Ricardo, ele volta, sanguíneo, ao centro de nossa arena política. A dificuldade em impor uma racionalidade política e burocrática que supere o patrimonialismo cordial ainda faz parte, infelizmente, da agenda brasileira.
Muito menos discutidos do que a dimensão política desse estilo mental são seus correlatos na vida econômica. Em Raízes do Brasil eles estão esboçados, mas foram melhor desenvolvidas somente na dissertação de mestrado que Sergio Buarque defendeu na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo em 1958, intitulada Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos descobrimentos, texto inédito conservado no arquivo da Unicamp, do qual algumas passagens foram publicadas em 1958 e 1959 no suplemento literário do Estado. Poucos, mesmo entre os estudiosos da obra de Sergio Buarque, tiveram a oportunidade de ler esse estudo. Nele, as linhas que orientam os dois primeiros capítulos de Raízes do Brasil (Fronteiras da Europa e Trabalho & Aventura) são retomadas e desenvolvidas, enfatizando os traços culturais que formavam a cultura portuguesa na época da expansão marítima e a ética econômica gestada naquele contexto. Não é uma continuação de Raízes do Brasil, mas uma introdução expandida às dinâmicas históricas que dariam origem, já deste lado do Atlântico, ao “homem cordial”. O texto se ocupa algumas vezes do Brasil, mas sobretudo como prolongamento da sociedade portuguesa. Mesmo assim, não é difícil perceber que Sergio Buarque escreveu esse trabalho pensando em seu país.
Construtores de um império colonial que, até a descoberta do ouro mineiro, praticamente só estabelecia povoações duradouras “junto à fralda do mar”, os portugueses se pareciam em sua expansão ultramarina antes com os antigos fenícios do que com seus vizinhos espanhóis, que rapidamente ocuparam grande parte do interior da enorme porção que lhes coube, segundo determinação papal, do continente americano. Os portugueses espelharam na América, em boa medida, aquela sociedade onde viviam, no extremo ocidente da Europa. Sergio Buarque traça o retrato de um Portugal que, no século XVI, se pareceria muito mais com o Brasil do século seguinte (e, de certa forma, dos dias de hoje) do que com o que se iria encontrar, à mesma época, na metrópole. Segundo consta em fontes de época, no começo do século XVII, cerca de um décimo da população de Lisboa seria de escravizados africanos, que desempenhavam trabalhos manuais pesados, incluindo a limpeza das ruas, além de levarem água e comida às residências. Havia também mão de obra escravizada oriunda de outras partes: os “japões e chinas” (“gente de grande intelecto” e excelentes cozinheiros, segundo depoimento coevo) e os “mouros da Índia”. O Brasil seria, nesse sentido, um “imenso Portugal” muito mais herdeiro dessa forma de sociedade do que a própria metrópole, que atualmente se reconhece com muito menos facilidade nesse quadro de diversidade cultural, desigualdade e economia predatória.
Os elementos que formaram esse “pequeno Brasil” europeu do século XIII até o XVI se organizaram de modo a produzir uma ética econômica essencialmente quantitativa – virtudes correspondentes a uma cultura gestada em meio ao contato entre nobres que se misturavam com mouros e judeus bem versados em tratos comerciais. Ali, em meio à Reconquista peninsular e, depois, ao espectro da Reforma protestante, era compreensível que os grupos dominantes desejassem eliminar os elementos que destoassem do catolicismo. Eram especialmente encarecidas as restrições morais que se levantavam contra as atividades normalmente associadas a mouros e judeus. Artesãos eram geralmente mouros, e quando esses foram expulsos, as manufaturas decaíram sensivelmente. Num país onde o prestígio social aumentava tanto quanto mais se comprovasse a “limpeza de sangue” e a distância de tudo quanto sugerisse alguma transigência com os ímpios, surgiu uma ética econômica conformada por virtudes cavalheirescas – virtudes guerreiras, que admitiam saques e pilhagens, mas não o trabalho manual. A economia, escreve Sergio, era dominada por atividades “de uma espécie antes predatória do que produtiva”. A agricultura portuguesa – onde empregou-se, durante muito tempo, o trabalho de escravizados africanos – era minguada e tecnicamente primária. “A parcela mais ativa da população se adensava junto às praias, às angras, às bocas dos rios navegáveis, entregue à faina do comércio, e também dos misteres da navegação, das pescarias, do tráfego das salinas”. O interior era uma “desolada paisagem, com uma gente rala e miserável, vivendo em furnas, quase à maneira de trogloditas”. Um viajante do século XV conta que, tendo entrado em Portugal pelo norte da Espanha, não encontrou estrada alguma e passou fome e sede na natureza semidesértica, até encontrar a cidade de Braga. Com a expulsão dos mouros e judeus, declinou também a retidão nos tratos comerciais que lhes era própria e por todos reconhecida, mas que os cristãos não cultivavam e até evitavam, como seria de esperar num contexto onde não convinha despertar a atenção do Santo Ofício. Lê-se que era comum entre criadores portugueses tosquiar as ovelhas na chuva ou sobre solo encharcado, inflando o peso e, com isso, o preço da lã, mesmo sabendo que o procedimento estragaria o produto. Outros punham pedras nas caixas. Atitudes inexplicáveis para quem esperasse estabelecer um relacionamento duradouro com fregueses.
Esses apontamentos de Sergio Buarque ajudam, talvez, a melhor compreender alguns elementos de nossa vida econômica. Por exemplo, a avidez de nosso setor patronal em “flexibilizar” direitos trabalhistas, sem que se ofereça qualquer contrapartida relevante de investimento na formação técnica ou no bem-estar da força de trabalho, ou a predileção tradicional da burguesia brasileira por políticas econômicas propícias ao rentismo. Do mesmo modo, esse fundo cultural ajudaria a esclarecer as razões de um agronegócio que apoiou de primeira hora, e com entusiasmo, a eleição de um presidente que, tendo afrouxado as restrições à expansão da fronteira agrícola, pode ter prejudicado os interesses da mesma classe no balcão de negócios ao deitar por terra a imagem internacional que o país construiu desde a redemocratização – para não falar, naturalmente, do prejuízo ecológico potencialmente planetário. Entendem-se melhor, ainda, aquele investidor que já se mostra despreocupado com a pandemia corrente porque essa, supostamente, já não afeta as classes altas, assim como o financista um pouco mais sofisticado que disse, em linguagem mais sutil, que os arroubos autoritários presidenciais pouco importam, desde que garantidas as reformas estruturais, acrescentando que estava otimista com a economia porque, com uma quantidade sobrante de desempregados, “podemos crescer sem pressão inflacionária”. Resulta mais compreensível, ainda, a estranha racionalidade que presidiu a ação dos empresários que recentemente apareceram mascarados na Suprema Corte para pedir, cordialmente, que a Justiça (ou o seu “chefe”) reabrisse as porteiras do Brasil. Entendem-se melhor, finalmente, os milhões de brasileiros de vida bem mais modesta que estão dispostos a espalhar mentiras e relativizar mortes, ignorando o consenso científico e econômico internacional. A muitos desses, ricos ou não, talvez não ocorra que, assim como tosquiar ovelhas na chuva pode ser lucrativo apenas no curto prazo, acelerar a “reabertura” do Brasil pode dar sobrevida a alguns CNPJs, apenas para contratar, no longo prazo, uma recessão muito maior e prolongada, para não falar na perda de “capital humano”. Não abandonam seu líder, que amam, como a um parente, que lhes parece doce, singelo, familiar.